A ESCRITURA, A GRAÇA, A FÉ, CRISTO E GLÓRIA


Categoria: Acervo
Imagem: Sola Gratia - Revista Comuna
Publicado: 16 de Março de 2014, Domingo, 03h57

A Reforma foi uma chamada ao cristianismo autêntico, uma tentativa de escapar da corrupção medieval da fé por meio de renovação e reforma. Seus ensinos, que giravam em torno da repetição quíntupla da palavra sola (“Somente”), eram uma mensagem radical para aquela época (e deveria ser para a nossa), porque exigiam um compromisso com um ponto de vista completamente teocêntrico da fé e da vida.

John d. hannah [1[

No capítulo inicial, observamos que, em resposta aos abusos da Igreja Católica Romana, os protestantes cunharam cinco slogans ou lemas: somente a Escritura (sola Scriptura), somente a graça (sola gratia), somente a fé (sola fides), somente Cristo (solus Christus) e glória somente a Deus (soli Deo gloria). Os fundamentos da doutrina reformada podem ser resumidos nessas cinco divisas da Reforma. Consideramos o significado e as implicações de cada um desses slogans.

SOMENTE A ESCRITURA (SOLA SCRIPTURA)
No final da época medieval, homens como John Wycliffe e John Huss chamaram as pessoas a retornarem à Escritura. Quando desafiado pelos oficiais eclesiásticos hostis, Huss respondeu diversas vezes aos seus oponentes: “Mostrem-me com base nas Escrituras, e eu me arrependerei e voltarei atrás”. A devoção de Huss à Escritura custou-lhe a vida, porque esse princípio o compelia a atacar tanto o curialismo (o príncipio sobre o qual se fundamenta a autoridade papal) como o conciliarismo (o princípio sobre o qual repousa a suprema autoridade da tradição eclesiástica e das assembléias do prelado).

Os reformadores desenvolveram de várias maneiras significativas a ênfase de Huss sobre as Escrituras:

  • Autoridade. Os reformadores contenderam que todas as coisas têm de ser testadas pela “Escritura somente” (sola Scriptura). Isso explica por que os reformadores aceitaram algumas partes dos ensinos da Igreja Católica e outras partes não. Eles acreditavam que as Escrituras têm de reger a igreja, porque ela é a Palavra e a voz de Deus (verbum Dei). Portanto, sua autoridade é absoluta, e não derivada, eles diziam. João Calvino disse que a Escritura possui tanta autoridade como se o próprio Deus “estivesse proferindo afirmações”. [2] Um cristão deve confiar nas promessas da Escritura e ser governado por elas, [3] e a igreja deve submeter-se completamente à autoridade da Escritura. [4] De fato, todos os outros tipos de autoridade – civil, do papa ou dos credos – têm de subordinar-se à Escritura.

O calvinista crê que toda a Escritura é a Palavra de Deus e, por isso, se esforça por submeter-se a ela. O calvinista entende que não pode julgar a Escritura; pelo contrário, ela deve nos julgar.

  • Infabilidade e inerrância. Os reformadores ensinavam que a infabilidade da Bíblia é ampla, pois cada palavra de cada sentença é o sopro de Deus vivo. Eles honravam 2 Timóteo 3.16-17: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra. Além disso, somente a Escritura é inerrante.” “Aprendi a sustentar apenas a Escritura Sagrada como inerrante”, disse Martinho Lutero citando a carta de Agostinho a Jerônimo. [5]

De acordo com Fred Klooster, este ponto de vista a respeito da Escritura como “única e completa” (sola e tota Scriptura) é exclusivamente reformado. [6] Isso levou os calvinistas a enfatizar que somente a Escritura pode impor-se à consciência dos crentes (Confissão de Fé de Westminster, 1.10, 20.2, 31.4).

  • Auto-interpretação e auto-confirmação. Os teólogos reformados também ressaltaram a harmonia entre a Escritura e o Espírito Santo (Spiritus cum verbo). O Espírito Santo é o verdadeiro expositor da Bíblia (disse Ulrich Zwingli), que capacita a igreja a reconhecer que a Escritura interpreta a Escritura (Confissão de Fé de Westminster, 1.6). A chave da interpretação pertence a toda a comunidade de cristãos, e não somente a Pedro e aos seus supostos sucessores em Roma. Embora a tradição possa ajudar na interpretação, o significado verdadeiro e espiritual da Escritura é o seu sentido natural e literal, e não o sentido alegórico, a não ser que a passagem específica da Escritura que está sendo estudada possua uma natureza claramente alegórica. O caráter autoconfirmativo da Escritura, como enfatizou Calvino, era igualmente importante. Esse ensino sustenta que o ensino bíblico é confirmado pelo testemunho interno do Espírito no coração do crente (Institutas, 1.7.2-4; cf. Confissão de Fé de Westminster, 1.5). Calvino concluiu: “Isto deve permanecer como um fato estabelecido: aqueles a quem o Espírito ensina interiormente descansam firmemente na Escritura; a Escritura é confirmada por ela mesma; e não é correto que ela seja tornada dependente de exibição de argumentação, visto que é por meio do testemunho do Espírito que a Escritura obtém em nossa mente a certeza que ela merece”. [7]
  • Libertação. Os reformadores libertaram a Bíblia da hierarquia católica romana em pelo menos três maneiras: por meio da tradução em vernáculo, como a Bíblia alemã de Lutero; por meio da pregação expositiva, recomeçada por Zwingli; e por meio da exegese gramático-histórica, mais bem exemplificada pelos comentários de Calvino. Eles ensinavam que a Bíblia é a regra de prática que guia nossos deveres diários. A Escritura é Deus falando conosco como um pai fala com seus filhos, disse Calvino.
  • Poder. Os reformadores ensinavam que Deus nos deu a Escritura como sua Palavra de verdade e de poder. Como sua Palavra de verdade, podemos confiar na Escritura quanto a esta vida e quanto à eternidade. Como a Palavra de poder, podemos estudar a Escritura para que ela transforme e renove a nossa mente, por meio do Espírito de Deus. Esse poder tem de ser manifestado em nossas vidas, lares, igrejas e comunidades. Enquanto outros livros podem nos informar e até reformar-nos, somente um livro pode transformar-nos e conformar-nos à imagem de Cristo. Somente assim seremos verdadeiramente filhos e filhas de Deus e herdeiros da Reforma.

Como entendemos o princípio de sola Scriptura? Examinamos, amamos, vivemos e oramos a respeito das Escrituras Sagradas? A Bíblia é a bússola que nos orienta através das tempestades e das ondas que enfrentamos na vida? A Escritura é o espelho pelo qual nos vestimos (Tg 1.22-27), a regra pela qual agimos (Gl 6.16), a água com a qual nos lavamos (Sl 119.9), o fogo que nos aquece (Lc 24.32), a comida que nos alimenta (Jó 23.12), a espada com que lutamos (Ef 6.17), o conselheiro que resolve nossas dúvidas e temores (Sl 119.24) e a herança que nos enriquece (Sl 119.111-112)? Estamos aprendendo das Escrituras, como disse John Flavel, “a melhor maneira de vivermos, a mais nobre maneira de sofrermos e mais vantajosa maneira de morrermos”? [8] O sola Scriptura se tornou a nossa divisa, levando-nos a, como Lutero e Calvino, tornar-nos cativos, em nossa consciência, da própria Palavra de Deus?

SOMENTE A GRAÇA (SOLA GRATIA)
O homem inicia e participa de seu perdão e salvação, ou é Deus quem inicia e completa a salvação de pecadores, de modo que toda a obra seja atribuída somente à graça soberana (sola gratia)? Em resposta a Diatribe, de Desiderius Erasmus, o livro A Escravidão da Vontade, escrito por Lutero, coloca-se inequivocamente ao lado da graça soberana.

Lutero insistia que um pecador é incapaz de prover ou mesmo de se apropriar da salvação. Ao dizer isso, Lutero atacou o sistema de indulgências, peregrinações, penitências, jejuns, purgatório e mariolatria da igreja católica. Ele percebeu que a única maneira de derrotar o sistema baseado em obras da igreja católica era atingir a raiz da controvérsia: graça gratuita versus livre-arbítrio.

O vocábulo graça é comumente definido como o favor imerecido de Deus, mas essa definição não é tão abrangente. William Newman, um batista calvinista do século XIX, definiu graça assim: “É o favor espontâneo de Deus… outorgado… ao indigno”. [9] Aqueles que recebem graça não são apenas pecadores indignos e sem esperança; são rebeldes hostis que estão contra Deus, possuem coração mau e uma péssima lista de obras. Deus não está obrigado a ser amável e gracioso para com eles. Eles são pecadores e merecem o inferno. No entanto, de acordo com sua natureza, Deus derrama um amor totalmente imerecido sobre eles – e, quando Deus faz isso, a vida deles é mudada para sempre. Como diz Efésios 2.4-5, é motivado por um coração cheio de misericórdia e grande amor que Deus salva – resgata, livra, liberta – pecadores, pela graça. Embora eles sejam indignos de amor e repulsivos para Deus, por causa do pecado, ele lhes mostra amor. Deus lhes perdoa os pecados, dá-lhes conhecimento de si mesmo e move-os a responder com sinceridade à sua graça. Ao usarmos a expressão graça gratuita e soberana, estamos dizendo que o supremo Deus do céu e da terra – o Deus trino e soberano da salvação – deseja, espontaneamente, e aplica graça salvadora a pecadores culpados e desprezíveis, transformando suas vidas de tal modo que se regozijem nele e vivam para servi-lo.

A teologia reformada ensina que, se experimentarmos essa graça soberana, entenderemos o que ela realmente significa. Compreenderemos que, se a graça não é lvire e soberana, ela não é graça. Deus nos salva não por causa de alguma coisa possível ou factual, prevista ou preordenada em nós. Ele nos salva totalmente de acordo com seu soberano e amável beneplácito.

Um dos livros do Novo Testamento que enfatiza de modo especial a soberana e maravilhosa graça de Deus é a Epístola aos Romanos. De acordo com o apóstolo Paulo, essa graça torna judeus e gentios co-herdeiros do reino de Deus, com o fiel Abraão (Rm 4.16). Estabelece a paz entre Deus e pecadores que são inimigos dele (Rm 5.2). Visto que somente essa graça é mais poderosa do que as forças do pecado, ela traz liberdade verdadeira e duradoura do domínio do pecado (Rm 5.20-21;6-14). A graça de Deus capacita os cristãos com diferentes dons para servirem na igreja de Deus (Rm 12.6). Por fim, ela vencerá a morte. Essa graça é o precursor da vida eterna para todos os que a recebem (Rm 5.20-21), porque chega às eras anteriores à criação do tempo e, sem respeito ao mérito humano, escolhe homens e mulheres para a salvação (Rm 11.5-6).

Esta idéia de que a salvação deve tudo à graça de Deus é o tema preponderante não apenas em Romanos, mas em todas as epístolas de Paulo. Por exemplo, ele começou sua carta aos crentes de Filipos com uma oração em favor da igreja, dizendo: “Aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (1.6). Samuel Rutherford escreveu: “A semente de Deus produzirá a colheita de Deus”. [10] A salvação não um mérito nem uma realização nossa. Essa é a razão por que Paulo orava, com alegria e ações de graça, cada vez que se lembrava dos crentes de Filipos. Se o homem houvesse começado a obra de salvação, estivesse continuando-a e tivesse de completá-la, o louvor de Paulo seria silenciado. Contudo, visto que a salvação resulta da obra divina que persiste dia a dia, apesar das lutas e da demora do homem, uma obra que certamente será aperfeiçoada no grande dia, tudo isso visa ao louvor e à glória do Deus trino. Essa é a razão por que Paulo agradecia a Deus por todas as doutrinas da graça e se alegrava quando pensava no fato de que os crentes haviam sido atraídos a Cristo. Ao apegar-nos à graça de Deus, podemos, como Paulo, ser crentes jubilosos que confessam vitoriosamente: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31).

A graça nos chama (Gl 1.15), nos regenera (Tt 3.5), nos justifica (Rm 3.24), nos santifica (Hb 13.20-21) e nos preserva (1 Pe 1.3-5). Precisamos de graça para nos perdoar, nos converter a Deus, curar nosso coração corrompido e nos fortalecer em tempos de tribulação e conflito espiritual. Somente por meio da graça gratuita e soberana de Deus podemos ter um relacionamento salvífico com ele. Somente por meio da graça, podemos ser chamados à conversão (Ef 2.8-10), à santidade (2Pe 3.18), a servir a Deus (Fp 3.12) ou a sofrer (2Co 1.12).

A graça soberana destrói o nosso orgulho. Ela nos envergonha e nos humilha. Queremos ser os sujeitos, e não os objetos, da salvação. Quer ser ativos, e não passivos, no processo. Resistimos à verdade de que somente Deus é o autor e consumador da fé. Por natureza, nos rebelamos contra a graça soberana, mas Deus sabe como destruir a nossa rebelião e nos tornar amigos dessa grande doutrina. Quando Deus ensina aos pecadores que o seu íntio é corrompido, a graça soberana se torna a mais estimulante de todas as doutrinas.

Desde a eleição à glorificação, a graça reina em esplêndido isolamento. João 1.16 nos diz que recebemos “graça sobre graça”; isso significa, literalmente, “graça diante de graça ou graça sobreposta a graça”. A graça segue a graça, em nossa vida, como as ondas seguem umas às outras até à praia. A graça é o princípio divino pelo qual Deus nos salva; é a provisão divina na pessoa e obra de Jesus Cristo; é a prerrogativa divina manifestando-se na eleição, na chamada e na regeneração; é o poder de Deus capacitando-nos, gratuitamente, a aceitar a Cristo, para que vivamos, soframos e morramos por amor a ele e sejamos preservados nele para a eternidade.

Os calvinistas entendem que, sem a graça soberana, todos seriam eternamente perdidos. A salvação é uma obra plenamente da graça e de Deus. A vida tem de vir de Deus, antes que um pecador possa ressuscitar dos mortos.

A graça gratuita reivindica expressão na igreja contemporânea. Decisões humanas, manipulação das multidões e convites para vir à frente não produzem conversões genuínas. Somente o antigo evangelho da graça soberana pode capturar a transformar pecadores pelo poder da Palavra e do Espírito de Deus.

Quão bem entendemos e vivemos de acordo com o sola gratia? Já aprendemos, por experiência pessoal, que a graça faz tudo por nós? Quando visitamos uma amiga idosa em um abrigo de idosos, algum tempo atrás, observei que ela não tinha nada fixado nas paredes de seu quarto, exceto um cartaz em que ela escrevera: Riquezas de Deus por causa de Cristo.

“Isso significa muito para mim, porque vivo tão-somente pela graça”, ela disse.

Isso é verdade a respeito de todos nós? Somos filhos e filhas da Reforma que cantam, de coração, “Preciosa graça”? Muitos declaram concordar com a graça soberana, mas ela raramente muda as suas vidas. Quão ricos são aqueles que experimentam em verdade as palavras deste hino:

Oh! Quão grande devedor à graça
Sou, cada dia, compelido a sentir-me!
Que a tua graça, como uma algema,
Prenda a ti meu coração vagante.
Sinto-o inclinado a vaguear, Senhor,
Inclinado a deixar o Deus que amo.
Toma meu coração, toma-o e sela-o,
Sela-o para as tuas cortes no céu! [11]

SOMENTE A FÉ (SOLA FIDE)
A ênfase da Reforma na fé somente foi o resultado dos intensos conflitos de Lutero para resolver a questão a respeito de como um pecador caído pode ser salvo. “Minha situação era que, embora fosse um monge impecável, permanecia diante de Deus como um pecador de consciência atribulada e não tinha qualquer confiança de que meu caráter satisfizesse a Deus. Noite e dia, eu pensava nisso”, disse Lutero. A solução veio quando lhe foi dado um discernimento sobre Romanos 1.17: “Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé”. Posteriormente, Lutero escreveu: “Eu compreendi que a justiça de Deus é a justiça pela qual, por meio de graça e pura misericórdia, ele nos justifica pela fé. Imediatamente, senti-me haver entrado pelas portas do Paraíso”. [12]

Por fim, Lutero entendeu que a fé é o meio pelo qual a justificação chega ao pecador. O evangelho torna a fé o único meio pelo qual um pecador recebe a graça de Deus. Na tradição escolástica medieval, os teólogos falavam sobre obter a fé por intermédio da instrução e da pregação (fides acquisita). Essa fé era distinta da fé infundida (fide infusa), que é um dom da graça e implica aceitação de toda a verdade revelada.

Os protestantes repudiaram essa distinção, ensinando que nenhum desses tipos de fé nos justifica. A fé salvadora que vem pela pregação é também a fé que justifica, disseram eles. A justificação pela fé é um dom de Deus absolutamente essencial à salvação. Lutero também disse: “Esta doutrina é a pedra angular e o topo. Somente ela concebe, nutre, edifica, preserva e defende a igreja de Deus; e, sem ela, a igreja de Deus não pode existir nem mesmo por uma hora”. [13]

Os reformadores explicaram que as referências das Escrituras quanto à justificação pela fé somente nunca falam de uma justificação fundamentada na fé em si mesma (propter fidem), e sim da justificação fundamentada em Cristo e no seu sacrifício, a justiça que é imputada graciosamente a pecadores indignos (propter Christum). Como escreveu Calvino: “A justificação consiste no perdão dos pecados e na imputaçãoda justiça de Cristo”. [14]

Esta justificação somente pela fé em Cristo é o âmago do evangelho. Visto que não temos nenhuma justiça inerente que nos permita permanecer inculpáveis diante de Deus, precisamos de uma justiça de fora de nós mesmos (extra nos) – uma justiça “alheia”, como dizia Lutero – uma justiça aprovada por Deus e obtida para nós. Essa foi a justiça que Cristo proveu. [15]

Na regeneração, o Espírito Santo dá aos pecadores a fé para receberem a justiça de Cristo, para a salvação (Jo 1.12-13). A fé, em si mesma, não merece a salvação, de modo algum, mas ela recebe a transferência da justiça de Cristo. A fé não cria, ela apenas recebe. Como disse Calvino: “A fé justifica quando nos introduz na participação da justiça de Cristo”. [16]

A fé e a graça não estão em conflito. A salvação é por meio da fé porque é somente na fé que a graça de Deus é honrada. Sola gratia é confirmada por sola fide. A fé graciosa aceita de todo o coração a verdade do evangelho. Em pobreza, ela corre para as riquezas de Cristo; em culpa, ela busca a retidão de Cristo; em escravidão, ela corre à libertação em Cristo. A fé se apropria de Cristo e de sua justiça, unindo o pecador com o Salvador. A fé recebe a Cristo, com confiança, apegando-se à Palavra dele e crendo em suas promessas. Como Lutero escreveu: “A fé se apossa de Cristo e segura-o como uma possessão presente, assim como o anel segura a pedra preciosa”. [17] A fé veste a alma com a justiça de Cristo, capacitando a alma a viver por Cristo. Ela compromete toda a pessoa com todo o Cristo. [18]

Este conceito reformado da fé era bem diferente do conceito ensinado pela Igreja Católica Romana. A igreja de Roma mesclava a santificação com a justificação, por ensinar que a justificação não era obtida pela obra de Deus em declarar um pecador justo, e sim pela obra de Deus em torná-lo justo. Assim, no conceito católico, a justiça de Cristo tem de ser apoiada pela justiça do próprio pecador na justificação. Há graus na justificação, ensinava a Igreja Católica, e o crente depende da fé implícia (fides implicita) nos ensinos da igreja para receber a graça de Deus por meio dos sacramentos.

Sola fide versus fé e obras: à qual aderimos? A nossa fé está centrada em Cristo? Vivemos tão-somente por essa fé? Podemos dizer como Lutero: “A fé dá Cristo a mim; o amor, fluindo da fé, faz com que eu me dê ao meu próximo”? Entendemos, amamos e vivemos a verdade expressa pela sola fide? Somos filhos e filhas da Reforma?

SOMENTE CRISTO (SOLUS CHRISTUS)
A teologia reformada afirma que a Escritura, a graça e a fé – todas elas – enfatizam que a salvação é “somente por meio de Cristo” – ou seja, Cristo é o único Salvador (cf. At 4.12). B. B. Warfield escreveu:

É do seu objeto [Jesus Cristo] que a fé deriva o seu valor… O poder salvador da fé naõ reside nela mesma, e sim no todo-poderoso Salvador em quem ela descansa… Não é a fé [em si mesma] que salva, e sim a fé em Jesus Cristo… Estritamente falando, não é nem a fé em Cristo que salva, e sim Cristo que salva por meio da fé. [19]

A centralidade de Cristo é o fundamento da fé protestante. Lutero disse que Jesus Cristo é o “centro e a circunferência da Bíblia” – significando que o que Cristo é e o que ele fez, em sua morte e ressurreição, é o conteúdo fundamental da Escritura. [20]

As 67 teses [21] que Zwinglio escreveu, em 1523, enfatizavam este ponto mais firmemente do que as 95 teses de Lutero, escritas 16 anos antes. Por exemplo, Zwínglio disse em sua segunda tese: “A essência do evangelho é que nosso Senhor Jesus Cristo, o verdadeiro Filho de Deus, tornou conhecida a nós a vontade de seu Pai celestial e nos redimiu, por meio de sua inocência, da morte eterna e nos reconciliou com Deus”. A terceira tese continua: “Portanto, Cristo é o único caminho de salvação para todos que foram, são e serão salvos”. E a quarta tese diz: “Quem procura ou mostra qualquer outro caminho comete erro, sim, é um assassino de almas e ladrão”.

Zwinglio prosseguiu, dizendo: “Cristo é o Cabeça de todos os crentes, que são o seu corpo; e sem ele o corpo está morto” (Tese 7). “Cristo é o único Mediador entre Deus e nós” (Tese 19). “Cristo é a nossa justiça” (Tese 22). “Somente Deus perdoa pecados unicamente por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor” (Tese 50). “Todos os superiores espirituais devem se arrepender sem demora e estabelecer somente a cruz de Cristo, pois, do contrário, perecerão, visto que o machado já está posto à raiz das árvores” (Tese 65).

Nas palavras de Zwinglio, vemos que nossos ancestrais reformados proclamaram com ousadia a salvação somente por meio de Cristo (solus Christus). A vida está somente em Cristo, e fora dele existe apenas morte, eles disseram. A justiça de Deus pode ser satisfeita apenas mediante a obediência de Cristo. Sem Cristo, Deus é um fogo eterno, consumidor. Em Cristo, ele é um Pai gracioso. Sem Cristo, não podemos fazer nada. Nele, podemos fazer todas as coisas (Jo 15.5; Fp 4.13).

A justiça de Cristo não pode exaurir-se. Como disse Lutero: “Não podemos abranger ou euxarir a Cristo, o Justo eterno, com um único sermão ou pensamento. Aprender a apreciá-lo é uma lição eterna, que não poderemos terminar nesta ou na vida por vir”. [22]

Somente Cristo é e pode dar a salvação. Em Romanos 1 e 2, Paulo deixou claro que, embora haja uma manifestação de Deus fora de sua obra de salvação em Cristo, nenhuma quantidade de teologia natural pode unir Deus e o homem. A união com Cristo é o único meio de salvação.

Precisamos ouvir urgentemente o solus Christus em nossos dias de teologia pluralista, que expressa um ponto de vista tão pobre das Escrituras. Como disse Carl Braaten: “Em nossa época, há uma forte tendência, tanto na teologia católica como na protestante, de questionar a confissão cristã clássica de que Jesus Cristo é o único Salvador do mundo”. Muitos, prossegue Braaten, “estão retornando a uma forma da antiga e falida abordagem cristológica do protestantismo liberal do século XIX, chamando-a ‘nova’, quando ela é realmente nada mais do que uma Jesus-logia superficial e, no máximo, um ressurgimento da figura, exposta pelo protestantismo liberal, de Jesus como um exemplo moral da classe média piedosa”. [23] O resultado final é que muitos hoje – como H. R. Niebuhr disse tão admiravelmente sobre o antigo liberalismo teológico – proclamam e adoram “um Deus sem ira que trouxe um homem sem pecado a um reino sem julgamento, por meio das ministrações de um Cristo sem cruz”. [24]

Hoje, o pós-modernismo vê a verdade como totalmente pluralista e relativista. Não há uma verdade absoluta ou universal em nenhuma área de conhecimento, nem mesmo na religião. Os pós-modernistas são, por isso, céticos que rejeitam por completo qualquer conceito clássico da verdade. As afirmações exclusivas de Cristo e do cristianismo são anátemas para eles, que não vêem qualquer beleza em Cristo ou em sua obra extraordinária, para que o desejem.

Nossos pais reformados, ao utilizarem uma perspectiva que pode ser rastreada até Eusébio de Cesário, escritor do século IV, julgaram proveitoso pensar em Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei. A Confissão de Fé Batista de 1689, por exemplo, afirma-a nesses termos: “Cristo, e somente Cristo, é adequado para ser o mediador entre Deus e os homens. Ele é o profeta, sacerdote e rei da igreja de Deus” (8.9). [25] Observemos mais detidamente esses três ofícios.

  • Cristo, o Profeta. Cristo é o profeta de que necessitamos para nos instruir nas coisas de Deus, para remover nossa cegueira e ignorância. O Catecismo de Heidelberg chama-o de “nosso maior Profeta e Mestre, que revelou-nos plenamente o secreto conselho e vontade de Deus concernente à nossa redenção” (Pergunta 31).

Embora Deus tenha enviado profetas para o seu povo durante a antiga aliança – homens que os instruíram quanto à vontade de Deus -, aqueles que eram verdadeiramente vivos para Deus anelavam pela chegada do Profeta vindouro, que lhes daria um entendimento mais profundo e mais completo de Deus e de seus caminhos. Muito antes de Cristo, Moisés havia instruído o povo de Deus a esperar esse Profeta. Ele declarou: “O SENHOR, teu Deus, suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás” (Dt. 18.15).

Através dos longos séculos, os israelitas piedosos aguardavam o Profeta semelhante a Moisés. Até os mal instruídos samaritanos esperavam esse Profeta. Quando Jesus falou com a mulher samaritana, junto à fonte do patriarca Jacó, ela lhe disse: “Eu sei… que há de vir o Messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas”. A resposta de Jesus foi compassiva e direta: “Eu sou, eu que falo contigo” (Jo 4.25-26). Jesus era o cumprimento da promessa dada por Moisés.

Como o Profeta, Jesus é o único que pode revelar o que Deus tem planejado na história desde os “tempos eternos”, que pode ensinar e manifestar o verdadeiro significado das “Escrituras proféticas”, o Antigo Testamento (ver Rm 16.25-26). Podemos esperar progresso na vida cristã somente à medida que atentamos às instruções e aos ensinos de Jesus.

  • Cristo, o Sacerdote. Cristo é, também, um Sacerdote – um Sumo Sacerdote tremendamente necessário, que, como diz o Catecismo de Heidelberg, “por meio do sacrifício de seu corpo, redimiu-nos e faz contínua intercessão por nós diante do Pai” (Pergunta 31). Nas palavras da Confissão de Fé Batista de 1689, “por causa de nossa alienação de Deus e da imperfeição de nossa melhor adoração, precisamos do ofício sacerdotal de Cristo para nos reconciliar com Deus e nos tornar aceitáveis a ele” (8.10).

A cristologia reformada insiste na mediação sacerdotal de Cristo. A salvação está somente em Cristo porque há duas coisas que, não importando quão zelosamente tentemos, nunca podemos fazer; mas elas precisam ser feitas para que sejamos salvos. A primeira é satisfazer a justiça de Deus mediante a obediência à lei. Todos somos transgressores da lei; todos ficamos aquém da glória de Deus. Portanto, precisamos de Alguém que obedeça a lei perfeitamente por nós, em pensamentos, palavras e ações. Jesus fez isso por trinta e três anos, neste mundo, como nosso substituto. Ele obedeceu ativa e perfeitamente a lei. Ele mesmo perguntou: “Quem dentre vós me convence de pecado?” (Jo 8.46).

A segunda coisa que nunca podemos fazer é pagar o preço de nossos pecados. “O salário do pecado é a morte” (Rm 6.23), física, espiritual e eterna. Somente Jesus pôde comprimir a eternidade da pena do pecado em seu sofrimento e morte, na cruz do Calvário. Ele sofreu e morreu voluntariamente em favor de pecadores, como nós (Hb 9.12), pagando a penalidade de nosso pecado, expiando nossa culpa e livrando-nos do domínio do pecado (Tt 2.14), do poder do Diabo (Hb 2.14) e das conseqüências do pecado e da morte (2Tm 1.10) – tudo isso para nos reconciliar, como pecadores ímpios, com o Deus santo, ofendido.

Este é, certamente, um tema central nos primeiros capítulos da epístola de Paulo aos cristãos de Roma. Citando apenas um texto, em Romanos 5.10 lemos: “Quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho”. Que reconciliação de preço elevado! Para garantir a eficácia da reconciliação, o Sacerdote tinha de oferecer-se a si mesmo como sacrifício. Embora fôssemos inimigos de Deus, Cristo entregou sua vida por nós, espontânea e livremente, para realizar uma reconciliação eterna entre nós e seu Pai.

Assim, por meio de sua obediência ativa à lei e de sua obediência passiva em expiar o pecado mediante a sua própria morte, Cristo satisfez a justiça de Deus em favor dos eleitos. Não há outra maneira de chegarmos à presença de Deus, exceto por meio de Cristo.

O sacrifício sacerdotal de Jesus aconteceu uma única vez, mas Ele continua sendo nosso grande Sumo Sacerdote, o único que torna aceitáveis a Deus toda oração e todo louvor. Nos lugares celestiais, Ele permanece como nosso constante Advogado e Intercessor (Rm 8.34; 1Jo 2.1). Portanto, não deve causar-nos admiração o fato de que à doxologia de Romanos 16, Paulo tenha acrescentado que a Deus “seja dada a glória, por meio de Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos” (Rm 16.27). Novamente, o crescimento em Cristo está arraigado em nossa plena confiança nele como nosso Sacrifício, Mediador e Intercessor.

  • Cristo, o Rei. Finalmente, Cristo é o Rei de um domínio eterno e espiritual, regendo-o por intermédio de seu Espírito Santo. E, como tal, ele dá ordens que espera sejam obedecidas. O primeiro mandamento que ele dá a todos os homens e a todas as mulheres é que atendam à chamada do Pai para que coloquem a sua fé nele. A primeira ordem do evangelho, a pregação a respeito de Jesus, que revela o verdadeiro significado das Escrituras do Antigo Testamento, é esta: “Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua casa” (At 16.31).

Todos os que exercem a “obediência por fé”, como Paulo a chama em Romanos 16.26, são súditos de Cristo e cidadãos plenos de seu reino. Cristo é “o nosso Rei eterno, que nos governa por meio de sua Palavra e de seu Espírito, que nos defende e nos preserva no gozo dessa salvação” (Catecismo de Heidelberg, Pergunta 31). Como tal, podemos concordar com João Calvino, quando ele disse:

Podemos atravessar pacientemente esta vida, com sua miséria, frieza, desprezo, reprovações e outras aflições – contentes com isto: o nosso Rei jamais nos deixará indigentes, mas suprirá as nossas necessidades até que, terminada a nossa guerra, sejamos chamados ao triunfo. A natureza de seu governo é tal que ele compartilha conosco tudo que recebeu do Pai. Agora, ele nos equipa e capacita com seu poder, nos adorna com sua beleza e magnificência, nos enriquece com sua riqueza. [26]

Novamente, podemos esperar que cresceremos na vida cristã somente quando vivemos de modo obediente, em sujeição ao governo de Cristo.

Se você é um verdadeiro filho ou filha da Reforma, Cristo em seu tríplice ofício como Profeta, Sacerdote e Rei significará tudo para você. O evangelho é uma mensagem de solus Christus porque, desde o começo até o fim, está relacionado com o que Cristo é e o que ele realiza fora de nós, por nós, em nosso lugar. Você ama e vive solus Christus? Você o ama em sua pessoa, ofícios, naturezas e benefícios? Ele é o seu Profeta, que o ensina; o seu Sacerdote, que se deu em sacrifício e intercede por você e o abençoa; e o seu Rei, que o governa e o guia?

Você tem aprendido a conhecer a Cristo, de modo pessoal e experiencial, como seu Salvador e Senhor? Você já aprendeu que ele é mais do que um exemplo que devemos imitar, mais do que um mártir heróico, mais do que um psicólogo que pode curar suas feridas interiores e mais do que um “Santo Cristo” que lhe dá saúde e riqueza? [27] Já aprendeu que, em termos de salvação, Jesus Cristo é tudo por você, um pecador?

Um músico do século XIX conduziu certa vez a Nona Sinfonia de Beethoven com tanta magnificência, que a audiência lhe deu uma ovação, de pé, incomumente demorada. O maestro curvou o rosto, mas a audiência continuou aplaudindo. Por fim, ele retornou à orquestra e, com uma voz severa, disse: “Cavalheiros, cavalheiros!”.

Os membros da orquestra se esforçaram por entender. Alguém não correspondera aos seus sinais? O que estava errado com o maestro?

O maestro falou. “Cavalheiros, eu não sou nada”, ele disse. “Vocês não são nada, mas Beethoven é tudo!”.

À medida que você atravessa os estágios da vida em meio aos louvores de outros, tem sido dominado pelo verdadeiro Compositor de sua vida, o Senhor Jesus Cristo? Ele é tanto o divino Compositor como o divino Músico, que, por meio de seu Espírito, dá vida à sua composição decretada eternamente. Você tem visto, em suas alegrias e tristezas, que Cristo está dirigindo sua vida com tanto amor e compaixão, que você tem exclamado, com admiração, para outros: “Eu não sou nada, e você não é nada, mas Jesus Cristo é tudo”? Você pode dizer, juntamente com Paulo: “Para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (Fp 1.21)? Você tem experimentado algo da profundeza desta confissão: “A nossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus” (Cl 3.3)? Você sabe que “tudo é vosso… e vós, de Cristo, e Cristo, de Deus” (1Co 3.21b-23)?

A GLÓRIA SOMENTE A DEUS (SOLI DEO GLORIA)
Muitos pensadores cristãos sérios reconhecem que glorificar a Deus é um das principais vocações do homem, tanto nesta vida como na vida por vir. No entanto, o teólogo calvinista vai além disso, enfatizando as seguintes verdades:

  • O alvo de Deus é manifestar a sua glória. Ele manifesta a sua glória em tudo que faz, mais notavelmente em revelar sua excelência moral às suas criaturas e evocar o louvor delas por sua beleza e pelos benefícios que lhes outorga (cf. Ef 1.3). A glória de Deus é aquilo que o faz parecer glorioso aos anjos e aos homens.

A palavra glória no hebraico é kabod e deriva-se de uma raiz que significa “peso”. Por exemplo, o valor de uma moeda de ouro era determinado por seu peso. Portanto, ter peso significa ter valor ou dignidade. A palavra grega traduzida por gloria é doxa e originalmente significa opinião. Essa palavra se refere à importância ou ao valor que, em nossa opinião, atribuímos a alguém ou a algo. A idéia hebraica fala do que é inerente a Deus – seu valor ou dignidade intrínseca; a idéia grega fala da resposta de seres inteligentes e morais ao valor e à dignidade que eles vêem manifestados na Palavra e nas obras de Deus.

Em ambos os testamentos da Bíblia, a palavra glória significa a manifestação de excelência e da dignidade (glória demonstrada), bem como a resposta de honra e adoração a essa manifestação (glória dada). A glória de Deus é a beleza de suas perfeições multiformes, bem como o esplendor admirável que emana dessas perfeições. A excelência moral de Deus resplandece em grandeza e magnificência em seus atos de criação, providência e redenção (Is 44.23; Jo 12.28; 13.31-32). Ao contemplarem essa excelência, os adoradores de Deus lhe dão glória por meio de louvor, ações de graça e obediência (Jo 17.4;21.19; Rm 4.20;15.6,9; 1Pe 4.12-16).

Os serafins declararam: “Toda a terra está cheia da sua [de Deus] glória” (Is 6.3). Eles afirmaram que Deus deve receber a glória em tudo, até na condenação dos ímpios, mas a glória suprema de Deus é que a terra deve ser cheia de manifestação da sua graça salvadora. Como diz Romanos 5.21: “A fim de que, como o pecado reinou pela morte, assim também reinasse a graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”. Portanto, a maior manifestação da glória de Deus, no mundo, é mostrada por seu Filho. Como diz Atos 3.13: “O Deus de nossos pais, glorificou a seu Servo Jesus”.

  • O principal propósito do homem é glorificar a Deus. Em tudo que o homem faz, por palavras e por ações, ele deve empenhar-se para dar glória ao seu Criador e Redentor. Calvino incorporou essa verdade em sua vida e escritos, bem como em sua morte. Quando sua vida se aproximava do fim, o seu corpo foi assolado por inúmeras enfermidades. O seu sofrimento se tornou tão severo, que seus mais queridos amigos rogavam-lhe que parasse de trabalhar. Calvino respondeu: “O quê? O meu Senhor me achará ocioso?” Quão característico isso era do homem que vivia pelo lema “Eu te ofereço, Senhor, meu coração, pronta e sinceramente”.

De modo semelhante, os calvinistas dedicam suas vidas à glória de Deus. São homens e mulheres que estão convencidos de que o principal propósito de sua vida é glorificar a Deus. Como afirma tão magnificamente o Catecismo de Heidelberg, o único consolo deles na vida e na morte é que pertencem ao seu fiel Salvador, Jesus Cristo (Pergunta 1). Quando o calvinista se apega ao soli Deo gloria em sua peregrinação espiritual, ele confessa que tudo que Deus faz é bom. Baseado nas Escrituras e por amor a Cristo, ele confia que todas as coisas concorrem para a glória de Deus e para o bem dele (Rm 8.28).

  • O principal deleite do homem é louvar a Deus. Encontramos felicidade suprema em louvar a Deus. É o ato mais sublime e mais recompensador. O Breve Catecismo de Westminster expressa isso de modo sucinto, quando diz: “O principal propósito do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre” (Pergunta 1).

Dar glória somente a Deus era o estímulo da Reforma. É claro que o dar glória a Deus não tenciona dar-lhe algo que ele não tem. Quando Deus é glorificado na vida dos homens e nas palavras humanas, ele não se torna mais glorioso do que sempre foi e sempre será. Nas palavras de Thomas Watson, um teólogo puritano do século XVIII, “a glória de Deus é uma parte tão essencial de seu caráter, que ela não pode ser Deus sem ela”. [28] Uma doxologia verdadeira exalta a Deus pelo que ele é, reconehcendo por que ele é digno de louvor e adoração humana.

Entendemos esse tipo de glória? Amamos glorificar a Deus e viver para ele? Podemos dizer, às vezes, como Jonathan Edwards: “Os grandes momentos de minha vida não foram aqueles em que me preocupei com minha própria salvação, e sim aqueles em que fui levado à comunhão com Deus e contemplei sua beleza e desejei sua glória… Eu me regozijei e anelei ser esvaziado e aniquilado do eu, a fim de que fosse cheio tão-somente da glória de Deus e de Cristo”? [29]

O verdadeiro calvinista anela usar cada dom que Deus lhe deu para glorificá-lo. Resolve viver a ordem de Paulo: “Fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo… Quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 6.20;10.31).

O paradigma doxológico de Paulo, apresentado em Romanos 11.36, estabelece o padrão de vivermos somente para a glória de Deus: “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a gloria eternamente”. Estas três preposições – de, por e para – dizem tudo. “Dele” indica que Deus é a fonte de todas as coisas. Tudo tem sua origem ou causa em Deus (Jo 1.3). “Por meio dele” indica que Deus é o sustentador de tudo que ele criou; ele sozinho mantém todas as coisas juntas (Cl 1.17). “Para ele” indica que Deus é o alvo; todas as coisas existem para ele. Comentando Romanos 11.36, Calvino disse: “Ele é a fonte de todas as coisas visto que elas procederam dele; ele é o Criador. Ele é o agente por meio do qual todas as coisas subsistem e são direcionados ao seu objetivo apropriado. Ele é o alvo final para cuja glória todas as coisas contribuem”. [30]

Usando esse paradigma, como o calvinista glorifica a Deus? Por confessar seus pecados a Deus e buscar o perdão em Cristo, para ter em si a restauração da natureza de Deus. Por louvar, adorar e deleitar-se no Deus trino como Criador, Provedor e Redentor. Por confiar em Deus e entregar-lhe todas as coisas. Por mostrar-se fervorosamente zeloso pela glória do Deus trino. Por andar com humildade, gratidão e alegria diante de Deus, tornando-se cada vez mais conformado à imagem do Filho de Deus. Por conhecer, amar e viver os mandamentos da Palavra de Deus. Por ter uma mentalidade celestial e nutrir desejo de estar com ele para sempre.

Soli Deo gloria é o mais elevado anseio de um calvinista. Nenhum outro alvo ou desejo pode equiparar-se ao viver para a glória de Deus. O verdadeiro calvinista acha propósito e regozijo em glorificar a Deus. Pela graça, ele crê, conhece, ama e vive a doxologia:

Louvai o Senhor, santos na terra,
E suas cortes mostrai sua bondade;
Louvai o Senhor, hostes celestiais,
Adorai no céu o seu amor infinito.

Louvai o Senhor; vós, todas as criaturas,
Cantai os louvores do vosso Deus e Rei.
Tudo que respira proclame seu louvor
E glorifique o seu santo nome. [31]

  1. John D. Hannah, To God be the Glory (Wheaton, III.: Crossway, 2000), p. 6.
  2. Inst., 1.7.1.
  3. Inst., 3.2.6-7.
  4. Inst., 4.8.
  5. Ewald M. Plass (ed.), What Luther Says: An Anthology, vol. 1 (St Louis: Concordia, 1959), p. 87.
  6. Fred Klooster, “The Uniqueness of Reformed Theology: A Preliminary Attempt at Description” (Grand Rapids: The Reformed Ecumenical Synod, 1979), p. 1.
  7. Inst., 1.7.5.
  8. Citado em John Blanchard, Gathered Gold (Welwyn, England: Evangelical Press, 1984), p. 17.
  9. William Newman, “Biblical and Theological Terms Defined”, em The Baptist Magazine, 24 (1832), p. 388. Ênfase acrescentado.
  10. Samuel Rutherford, “Letter to Marion Macknaught, Anworth, June 6, 1624”, em Letters of the Rev. Samuel Rutherford (New York: Robert Carter & Brothers, 1881), p. 31. Carta enviada a Marion Macknaught, 6 de junho de 1624.
  11. Do hino “Come, Thou Fount Every Blessing”, escrito por Robert Robinson, 1758.
  12. Cf. D. Martin Luthers Werke, ed. J C. F. Knaake et al. (Weimar: Herman Bohlaus, 1883), p. 401, 33, 7-9.
  13. Ewald M. Plass (ed.), What Luther Says, vol. 2, p. 704.
  14. Inst., 3.11.2.
  15. R. C. Sproul, Justified by Faith Alone (Wheaton, III.: Crossway, 1999), p. 34-35.
  16. Inst., 3.9.20.
  17. Citado em John Blanchard, Gathered GOld, p. 98.
  18. Alguns destes parágrafos foram condensados do capítulo Joel R. Beeke, “The Relation of Faith to Justification”, em Dom Kistler (ed.), Justification by Faith Alone (Morgan, Pa.: Soli Deo Gloria, 2003), p. 53-105.
  19. B. B. Warfield, Biblical and Theological Studies (Philadelphia: P&R, 1968), p. 423-425.
  20. Ewald M. Plass (ed.), What Luther Says, vol. 1, p. 145-148.
  21. Philip Schaff, Creeds of Christendom, vol. 3 (Grand Rapids: Baker, 1993), p. 197-207.
  22. Ewald M. Plass (ed.), What Luther Says, vol. 2, p. 714-715.
  23. Carl E. Braaten, “Salvation Through Christ Alone”, em Lutheran Forum (Nov. 1988), p. 8, 10-11.
  24. H. Richard Niebuhr, The Kingdom of God in America (Hamden, Conn.: Shoe String Press, 1956), p. 193.
  25. Fé para Hoje: A Confissão de Fé Batista de 1689 (São José dos Campos: Fiel, 1991), p. 24-25.
  26. Inst., 2.15.4.
  27. Sinclair B. Ferguson, In Christ Alone: Living the Gospel-Centered Life (Orlando: Reformation Trust, 2007), p. 15-19.
  28. Thomas Watson, A Body of Divinity (London: Banner of Truth Trust, 1958), p. 5.
  29. Edward Hickman (ed.), The Works of Jonathan Edwards vol. 1 (Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1974), p. lxv-lxxiii.
  30. Commentary em Romanos 11.36.
  31. Joel R. Beeke (ed.), The Psalter (Grand Rapids, Reformation Heritage Books, 2006), no. 410 (Psalm 150)..

 

Fonte: Vivendo para a Gloria de Deus, Joel R. Beeke, Editora Fiel


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