LUTERO, MÜNTZER, KIERKEGAARD, BONHOEFFER E LUTHER KING: UM DESAFIO SOBRE RESISTÊNCIA A PARTIR DE UMA ÓTICA PROTESTANTE


Categoria: Filosofia
Imagem: Montagem Protestantismo.com.br
Publicado: 17 de Julho de 2020, Sexta Feira, 02h06

MATHEUS SCHMAELTER
Trabalho apresentado na XV Semana de Pós-Graduação em Filosofia
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

1 INTRODUÇÃO
Na obra Dogmatismo e tolerância, de 2004, Rubem Alves afirma que “o fato é que nós, protestantes, nos tornamos animais domésticos: mansos, ruminantes, amigos dos mesmos caminhos, como vacas que, às mesmas horas, andam pelas mesmas trilhas rumo aos mesmos destinos…” Esta afirmação do conhecido teólogo, filósofo, psicanalista e educador brasileiro nos possibilita remeter à concepção do cristianismo como descrita por Maquiavel em seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, onde o autor se refere ao cristianismo, em comparação com a educação da Roma antiga, como uma religião que torna os homens “menos fortes” porque, ao “mostrar a verdade e o verdadeiro caminho, leva-nos a estimar menos as honras mundanas, motivo porque os gentios, que as estimavam muito e viam nelas o sumo bem, eram mais ferozes em suas ações.” Curiosamente, Maquiavel conclui a redação dessa obra no mesmo ano em que o então frei e reformador Martinho Lutero afixou nas portas da igreja de Wittenberg o seu Debate para o esclarecimento do valor das indulgências, as famosas 95 teses, que, mesmo sem a intenção de inaugurar um movimento, marcará o início do que foi posteriormente chamado de Reforma Protestante. Porque a comparação traçada por Maquiavel entre o espírito do cristianismo e o da antiga Roma diz respeito ao amor pela liberdade destes últimos é que Lutero aparece como uma figura central. Seguindo a citação acima, Rubem Alves nos diz que

o vôo da águia nos foi roubado e rompemos relações com o cristão de Lutero, homem livre da lei, livre de tudo e de todos, como pré-requisito de ser livre para tudo e para todos…

Se partirmos, então, da relação entre o cristianismo e a liberdade definida por Maquiavel e refletirmos sobre a leitura que Rubem Alves faz de Lutero, podemos afirmar que Lutero retoma o valor da liberdade, dando ao cristianismo um caráter diverso daquele do autor florentino.

Na maioria das vezes, talvez sempre, quando falamos sobre resistência nos referimos à luta pela liberdade de um determinado povo ou de uma determinada pessoa que se vê privada dela por forças políticas que lhes são superiores. Esta concepção de resistência entra em choque tanto com a concepção do cristianismo traçada por Maquiavel quanto quando analisamos como o cristianismo, representado majoritariamente por evangélicos, elegeu e dá suporte para os poderes que atualmente regem a política brasileira, que se apresentam sob máximas como “Deus acima de todos” e “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. O presente trabalho, portanto, visa demonstrar não somente como uma ideia de resistência pode ser relacionada com o cristianismo como foi levada a cabo por importantes lideranças cristãs, desde o século XVI, por Martinho Lutero, até o século XX por, curiosamente carregando o mesmo nome, Martin Luther King, Jr.

2 MARTINHO LUTERO
Como afirmamos acima, a Reforma Protestante é marcada pela afixação por Martinho Lutero de suas 95 teses nos portais da igreja de Wittenberg, cidade onde era professor de teologia. É a partir desse momento e da publicação de outros documentos referentes a essa publicação e tema que começa o seu embate com a Igreja Católica. A bula de sua excomunhão foi expedida em 3 de Janeiro de 1521. Em seguida, durante a Assembleia Nacional aberta em 27 de Janeiro na cidade de Worms, um evento político, Lutero é chamado para se retratar e apresentar-se em 17 de Abril de 1521. A fala de Lutero é proferida diante de autoridades políticas, com as quais não cabia discutir questões teológicas. Ele argumenta logicamente, aponta que a bula não condenou seus escritos sobre o evangelho, que seus escritos contra o papado estão fundamentados em documentos católicos e que seus escritos sobre a tirania romana não podiam ser retratados, sob pena de incentivar o reinado da tirania e da impiedade. Em todo discurso, Lutero argumenta ética e racionalmente, apresentando suas razões humanas e demandando provas convincentes e racionais do suposto mal que provocava. Contudo, seu discurso é rejeitado e exigido apenas que o reformador responda retratar-se ou não. A resposta de Lutero foi como se segue:

A não ser que eu seja convencido pelo testemunho da Escritura ou por clara razão, pois não confio nem no papa nem em concílios isoladamente, visto que se sabe muito bem que eles tem errado e se contraditado muitas vezes. Estou preso às Escrituras que citei e a minha consciência é cativa da Palavra de Deus. Não posso retratar-me, e não me retratarei de coisa alguma, uma vez que não é seguro nem correto ir contra a consciência. Não posso agir de outra forma; aqui estou. Deus me ajude. Amém.

Podemos ver que são dois os elementos evidentemente fundamentais para que Lutero sustente sua posição, resistindo à imposição autoritária da Igreja e do Estado: seu apego às Escrituras, como única autoridade verdadeiramente confiável e inerrante, e sua consciência. É a partir destes fundamentos que Lutero sustenta sua liberdade para seguir agindo em nome do que considerava verdadeiro e justo. Naturalmente, sua postura não foi tolerada e foi, então, proscrito pelo Imperador.

3 THOMAS MÜNTZER
O grito de liberdade de Lutero, no entanto, havia sido dado apenas no âmbito eclesiástico. No que diz respeito ao poder secular, a fim de poder enfrentar o papado e difundir sua doutrina entre os fiéis da Alemanha, o reformador de Wittenberg escolheu aliar-se a eles, o que resultará no empobrecimento da Igreja, devido à secularização de seus bens, e no enriquecimento dos príncipes. Tal atitude, no entanto, manterá o povo comum sob a opressão do Estado e renderá a Lutero a veemente crítica de Thomas Müntzer, teólogo que no decorrer dos primeiros anos da Reforma Protestante escolheu fazê-la a partir dos camponeses, tornando-se, assim, a mais proeminente figura da Guerra dos Camponeses e do que ficou posteriormente conhecido como reforma radical.

Em seu escrito Expressa denúncia da falsa fé do mundo infiel, Müntzer apresenta um conceito de fé que se opõe ao luterano e é fundamental para sua polêmica: é a partir dela que estabelece sua crítica aos teólogos e imperadores e que se compreende o real sentido das Escrituras e a realização do Reino de Deus na terra. Também através dela, os simples camponeses são libertos da tirania da letra (perpetrada pelos teólogos, que detém o poder sobre a interpretação do texto bíblico) e dos príncipes, alcançando a condição da realização do Reino de Deus na terra. Na prática, isto se realizará na reforma da liturgia do culto e na revolta dos camponeses.

Müntzer é o primeiro pastor a reformar inteiramente o culto católico, inventando um novo ofício alemão. O objetivo era tornar o a Bíblia mais inteligível ao povo e fazê-lo participar ativamente do culto, agora, naturalmente, organizado em alemão. Para o reformador radical, o verdadeiro sacerdote “não deve permanecer passivo diante dos tiranos mas revelar plenamente o Testamento do Cristo, comentá-lo e cantá-lo em alemão para que os homens possam tomar uma feição cristã… Assim, se acabará toda a avareza, a usura e a sorrateira malignidade dos monges e das freiras…

O foco desta reforma é a instrução do povo, que estava totalmente “embrutecido” pela degenerescência da Igreja, e visa cumprir o seu real papel que, segundo ele, seria o de um pedagogo político, devendo suscitar uma ética e um espírito cívico, que consistem na caridade, e emancipar os homens da concupiscência, emancipação que seria inaugurada, de fato, por uma necessária transformação social. Assim, Müntzer acreditava que a destinação da Igreja era “instaurar uma comunidade humana igualitária, despertando o sacrifício e o amor, e opondo-se pela violência, se for preciso, a todos aqueles que criam obstáculo à atualização prática do Evangelho.” De acordo com sua compreensão teológica, se até então a Escritura esteve oculta, é sinal de que “a realização da verdadeira comunidade cristã faria soar a hora final do poder dos grandes e dos ricos.

Thomas Müntzer foi capturado, torturado e morto após a derrota dos camponeses na Batalha de Frankenhausen, em 27 de Maio de 1525.

4 SOREN KIERKEGAARD
Quatrocentos anos depois da Reforma, o luteranismo encontrava-se estável, como religião oficial do Estado dinamarquês. Aí, a Igreja não somente gozava de grande prestígio como era também uma mediadora na organização social. Em sua obra Indivíduo e comunidade na filosofia de Kierkegaard, o professor Marcio Gimenes de Paula descreve essa mediação:

O batismo oficial era luterano, e era por meio dele que relações sociais melhores podiam ser estabelecidas (como reconhecimento, empregos, etc.). A Igreja oficial também era responsável pelos casamentos, que geravam, por sua intermediação, efeito legal. Os pastores eram funcionários do Estado e pagos com proventos estatais. Eles eram uma espécie de representantes do Estado e transmitiam ao povo a ideia de religião como obrigação legal. A figura do pastor ocupa um lugar proeminente nessa sociedade: ele representa o Estado não somente de um modo simbólico, mas de um modo legal, uma vez que muitos contratos civis eram firmados nas igrejas.

É diante desse cenário que Soren Kierkegaard começa sua controversa polêmica contra a Igreja dinamarquesa, um evento que marcará os dois últimos anos de sua vida até sua morte. Sua filosofia é fortemente marcada pela distinção entre Cristianismo e Cristandade e pela crítica a esta em favor do primeiro.

A polêmica é realizada através de diversos artigos publicados em jornais populares e nos dez fascículos da revista O instante, publicada pelo próprio autor. No artigo intitulado Isso precisa ser dito; então que seja dito, o autor escreve:

Quem quer que você seja, qualquer que seja sua vida, meu amigo – deixando de participar (caso você geralmente participe) do culto divino público como ele agora está (professando ser o Cristianismo do Novo Testamento), você terá uma grande culpa a menos – você não está fazendo Deus de bobo ao chamar de Cristianismo do Novo Testamento o que não é o Cristianismo do Novo Testamento.

Ao escrever um parágrafo como esse em um jornal popular, Kierkegaard pretende chamar a atenção do homem comum para os desvios da Cristandade, representada pela Igreja oficial. Ao ser desafiado a escrever uma teologia dogmática a fim de provar seu ponto, o filósofo de Copenhagen rejeita o desafio, justamente porque deseja falar não a teólogos da alta intelectualidade dinamarquesa, mas ao cidadão comum. O que está em jogo para o autor é a verdade do Cristianismo do Novo Testamento que, a seu ver, está sendo distorcida por uma Igreja que considera todo cidadão dinamarquês um cristão, ignorando, desse modo, as exigências do que ele considera o verdadeiro Cristianismo, aquele descrito no Novo Testamento bíblico. Ao falar a respeito de sua posição, Kierkegaard afirma:

Estou de posse de um livro que é quase desconhecido no país, cujo título quero mencionar com precisão: o Novo Testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Apesar de ter uma relação totalmente livre com este livro e não estar comprometido com ele, p. ex., por um juramento, ele exerce, contudo, um grande poder sobre mim […]

Kierkegaard foi alvo de diversas críticas e chacotas na sociedade de Copenhagen, sendo o caso mais famoso aquele intitulado O Caso Corsário.

5 DIETRICH BONHOEFFER
Já no século XX, no ano de 1945, alguns meses antes da vitória dos aliados sobre os Nazistas e, consequentemente, do fim da 2ª Guerra Mundial, o pastor luterano alemão Dietrich Bonhoeffer foi assassinado, junto com outros companheiros, no campo de concentração nazista de Flossenbürg. O pastor foi, desde a juventude, um forte crítico de Adolf Hitler e do regime nazista, tendo participado de um dos planos para assassinar o ditador. Em resistência ao regime Nazista e à Igreja luterana alemã, que apoiou o partido, Bonhoeffer, juntamente com outros pastores de diferentes confissões, fundou a Igreja Confessante, a partir da Declaração Teológica de Barmen, escrita pelo importante teólogo suíço Karl Barth. A declaração afirmava que a Igreja Protestante Alemã não pertencia ao Reich, mas estava submissa somente a Jesus Cristo e ao seu Evangelho. Foi também fundador do seminário teológico de Finkenwalde, seminário ilegal com fins de ensinar a doutrina cristã sem a interferência de Hitler. Ambas as iniciativas foram, naturalmente, proibidas pela ditadura Nazista.

Bonhoeffer foi preso em sua casa pela Gestapo em abril de 1943, e esteve preso, sendo levado de uma prisão a outra até sua morte. De lá, escreveu diversas cartas para amigos e familiares, sempre codificadas, a fim de não serem interceptadas. Destas, uma das mais relevantes é a intitulada Dez anos depois, onde reflete a respeito dos dez anos de regime Nazista no país. A reflexão a seguir e extraída desta carta:

Aquele, todavia, que se dispõe a se realizar no mundo em verdadeira liberdade, que prega sobretudo a ação necessária, mesmo que pese sobre a consciência e prejudique seu nome; aquele que está pronto a sacrificar um princípio estéril ao compromisso fecundo, ou uma sabedoria estéril a um radicalismo que produz fruto, que tenha cuidado pra que não o derrube a sua liberdade. Ele é capaz de ceder ao ruim para impedir o pior e assim perderá a capacidade de reconhecer que exatamente o pior, que ele pretende evitar, poderia ser o melhor. Aqui está a origem de tragédias. […] Somente hoje os alemães começam a descobrir o que quer dizer livre responsabilidade. Ela se baseia sobre um Deus que exige o livre risco da fé numa ação responsável e que, àquele que nisso de torna pecador, garante o perdão e o conforto.

6 MARTIN LUTHER KING, JR.
De todos aqueles a quem atribuímos uma resistência cristã, o pastor batista Martin Luther King é, certamente, o mais reconhecido símbolo e a figura mais popular do ativismo cristão do século XX, de modo que suas palavras e suas atitudes irrompem para além das paredes das igrejas.

Da vida e trajetória de Luther King pouco precisa ser dito, tendo em vista que sua importância na luta pelos direitos civis dos negros norte americanos faz com que mesmo os menos informados possam saber quem ele foi e o que fez. Resta, portanto, atentarmos às suas próprias palavras, proferidas do Primeiro Comício da Associação pelo Progresso de Montgomery, na igreja batista de Holt Street, em Montgomery, em 5 de dezembro de 1955, por ocasião da prisão de Rosa Parks por ter-se negado a dar lugar a um homem branco em um ônibus:

Quero dizer que, em todas as nossas ações, devemos permanecer unidos. A união é a grande necessidade desta hora. Se estivermos unidos, alcançaremos muito daquilo que não só desejamos, mas que com justiça merecemos […] Nós, os deserdados desta terra, nós, por tanto tempo oprimidos, estamos cansados de atravessar a longa noite do cativeiro. E agora desejamos alcançar a aurora da liberdade, da justiça e da igualdade. Permitam-me que lhes diga, meus amigos, ao me aproximar do fim, e apenas dando uma ideia de porque estamos aqui reunidos, que Deus – e desejo enfatizar isso, em todas as nossas ações, em todas as nossas deliberações aqui nesta noite e por toda a semana e além, não importa o que fizermos -, que Deus esteja sempre conosco. Sejamos cristãos em todas as nossas ações. Mas quero dizer-lhes esta noite que para nós não basta falar do amor. O amor é um dos pilares da fé cristã, mas há uma outra face chamada justiça. E a justiça é de fato a ponderação do amor. Justiça é corrigir com amor aquilo que se rebela contra o amor. O próprio Deus Todo-Poderoso não é único, não é um Deus que permanece imóvel falando por meio de Oseias: ‘Eu te amo, Israel’. Ele também é o Deus que se coloca diante das nações e diz: ‘Aquietem-se e reconheçam que eu sou Deus, que, se não Me obedecerem, quebrarei a espinha dorsal do seu poder e arrancá-los-ei da órbita de suas relações nacionais e internacionais’. Ao lado do amor está sempre a justiça e estamos apenas usando as ferramentas da justiça.

Em abril de 1963, pastores brancos de Birmingham pediram que King pusesse fim às manifestações, o que foi rejeitado pelo pastor, que então estava preso na cadeia daquela cidade. Martin Luther King foi assassinado em 4 de abril de 1968.

7 CONCLUSÃO
Neste trabalho, não foi nossa pretensão aprofundar as ideias e problemas levantados pelos autores, mas somente apresentar, com exemplos, como a fé protestante e a Bíblia possibilitam a construção de uma resistência a partir do cristianismo. Muitos outros homens e mulheres da história do protestantismo deveriam ser citados, como o brasileiro Agostinho José Pereira, alfaiate negro, letrado, que a partir de suas pregações nas ruas do Recife fundou, em 1841, a Igreja do Divino Mestre, a primeira igreja protestante brasileira, que teve mais de 300 seguidores negros e negras, livres e libertos, aos quais ensinava a ler, e que foi preso em 1846, aos 47 anos, devido às atividades da igreja. No entanto, o tempo aqui não nos permite.

Contudo, a partir do que relatamos acima podemos ver que foi por pouco que Maquiavel não poderia ter feito sua análise do cristianismo de outra maneira. Quanto à afirmação de Rubem Alves, podemos saber que ela não é uma regra e que não somente é possível pensar uma resistência a partir de matrizes cristãs como ela foi e segue sendo feita.

 

Fonte: Academia.edu


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