PERÍODO SEMELHANTE A SARDO (1529-1558) NA PERSPECTIVA DE A. KNIGHT E W. ANGLIN


Categoria: Historiografia, Martinho Lutero
Imagem: The Protestant Reformation created a rift in the Christian faith (Credit: Emile Delperée / Wikipedia) - bigthink.com
Publicado: Originalmente publicado em Agosto/2008 e republicado no dia 08 de Agosto de 2021, Domingo, 00h04

Intransigência de Lutero
Era considerado pelo povo como sendo pouco menos que um papa, e realmente em algumas ocasiões os seus atos autorizam esta denominação. Sustentava a sua posição por meio de uma insistência brusca, e parece ter tido um certo receio de descer na estima dos seus semelhantes confessando qualquer erro. Quando lhe faltavam argumentos, ele servia-se de sofismas para manter a sua posição; e pelo menos em uma ocasião chegou a sacrificar os interesses do Evangelho às exigências do partido e à manutenção da sua autoridade. Isto parece forte demais, mas é provado por bastantes fatos, e a história deve ser verdadeira. O seu procedimento na conferência de Marburgo é prova suficiente. Esta conferência foi promovida por Filipe, príncipe de Hesse, e tinha por fim decidir a grande controvérsia sobre a Eucaristia, porque havia tanto tempo se batiam os reformadores alemães e suíços.

A Doutrina da Transubstanciação
Lutero nunca tinha podido livrar-se de tudo das redes do papismo; e a doutrina da presença verdadeira de Cristo na Eucaristia era um dogma a que ele se agarrou até o fim. É verdade que mudou a palavra transubstanciação por consubstanciação, e procurou modificar esta nociva e blasfema doutrina, mas a sua modificação foi um fraco expediente que não alterou o erro. Roma afirmava – custa escrevê-lo – que “as mãos dos sacerdotes são elevadas a uma altura que não é concedida a nenhum dos anjos, e podem criar Deus, o Criador de todas as coisas, e oferecê-lo para a salvação do mundo inteiro“. Por outras palavras, que o pão e vinho eram convertidos no corpo e sangue de Cristo na Eucaristia, fazendo desta doutrina a pedra da esquina da sua fábrica de erros, e condenando como infiéis todos aqueles que a rejeitavam. Lutero mantinha a mais absurda e igualmente errônea noção de que os elementos depois da consagração ficavam sendo exatamente o que eram antes dela – verdadeiro pão e vinho, “mas que o pão e vinho tinham também em si a substância material do corpo humano de Cristo” – “Logo que sejam pronunciadas as palavras de consagração sobre o pão, o corpo está ali, por mais perverso que possa ser o sacerdote que as pronuncia!” – São estas as próprias palavras do reformador! Ora Zwínglio e o grupo dos reformadores suíços tinham horror a ambas estas doutrinas. Tinham restabelecido o ensino das Escrituras quanto a estas preciosas memórias; e tinham largamente espalhado as suas convicções, embora particularmente, entre os sábios da Europa. O amigo de Lutero, o Dr. Carlstadt, foi um dos primeiros a rejeitar a ideia luterana e abraçar a antiga doutrina restaurada, mas Lutero, desgostoso pelas medidas brandas, publicou no ano 1525 um panfleto vigoroso contra o seu antigo chefe; e daqui nasceu a controvérsia.

Lutero Contra Zwínglio
A réplica de Lutero, que apareceu no mesmo ano, era caracterizada por uma grande arrogância e aspereza, e ele não hesitou em atribuir a Satanás os piedosos esforços de Zwínglio. Isto era na verdade um desafio, e Zwínglio não pôde deixar de entrar na luta contra ele. Mas, ainda assim, durante a controvérsia, que durou para cima de quatro anos, a linguagem do reformador suíço foi extremamente moderada. Estando absolutamente convencido da justiça da sua causa, suportou a cólera dos seus adversários sem ressentimento, e furou-lhes as malhas da armadura da sua teima com as setas da verdade. O resultado foi o que se podia esperar. Muitos dos luteranos mais esclarecidos, vendo com tristeza que seu chefe não queria investigar a questão pacificamente, começaram a perder confiança nele, e passaram para o lado dos suíços. No entanto, os papistas viram com manifesta alegria o progresso da controvérsia; e esta observação de Erasmo: “Os luteranos estão-se voltando com ardor para o grêmio da igreja“, tornou-se um provérbio na boca de todos.

Conferência dos Reformadores
A conferência, que foi muito concorrida, na qual apenas tomaram parte Lutero, Zwínglio, Melanchton e Oecolâmpade, não deu muito bons resultados. Lutero foi para lá com uma ideia fixa, e protestou desde o princípio que havia sempre de divergir da opinião dos seus adversários no que dizia respeito à doutrina da Ceia do Senhor. Pegando num bocado de giz, escreveu em letras grandes no pano de veludo da mesa: “Hoc est corpus meum” (“Este é o meu corpo”). “São estas as palavras de Cristo“, disse ele, “e nenhum adversário será capaz de me fazer arredar daqui“. Repetindo as mesmas palavras, acrescentou, momentos depois: “Que alguém me prove que um corpo não é um corpo. Eu rejeito a razão, ao senso comum e aos argumentos carnais: as provas são matemáticas. Deus está acima da matemática. Temos a palavra de Deus – devemos respeitá-la e fazer o que ela manda“.

No prosseguimento da discussão, o acertado raciocínio de Zwínglio produziu um grande efeito, mas Lutero conservou-se teimoso e inflexível. Os argumentos apresentados pelo suíço, tirados das Escrituras, evidentemente perturbaram-lhe o espírito, mas ele tinha ido muito longe e já era tarde para retroceder. Por fim Zwínglio apresentou um argumento, que Oecolâmpade já tinha apresentado de manhã quanto à significação da frase “a carne para nada aproveita”. Lutero então observou: “Quando Cristo diz que a carne para nada aproveita, não fala da sua carne, mas, sim da nossa“. Zwínglio respondeu: “A alma alimenta-se do Espírito e não da carne“. Lutero disse: “É com a boca que comemos o corpo; a alma não o come; comemo-lo espiritualmente com a alma“. Zwínglio: “Assim faz do corpo um alimento corporal e não espiritual“. Lutero: “O senhor é sofismador“. Zwínglio: “Não, mas o senhor é que está a dizer coisas contraditórias“. Lutero: “Se Deus me apresentasse maçãs silvestres, eu as havia de comer espiritualmente. Na Ceia do Senhor a boca recebe o corpo de Cristo, e a alma crê nas suas palavras“.

Lutero estava agora dizendo coisas sem nexo e Zwínglio procedeu com critério, apresentando novos argumentos e afirmando as suas ideias em lugar de combater as do seu adversário. Mas Lutero não se queria confessar vencido. “Este é o meu corpo“, gritava ele de vez em quando, e era nesta frase que procurava um refúgio seguro em todas as suas dificuldades. “O demônio não me poderá afastar disto!” dizia ele, “procurar compreendê-lo é afastar-se da fé“.

Daí um pouco Oecolâmpade, citando 2 Co 5.17 disse: “Nós não conhecemos Jesus Cristo segundo a carne“. Lutero: “Segundo a carne significa, nessa passagem, segundo as nossas afeições carnais“. Zwínglio: “Então responda-me a isto, Dr. Lutero, Cristo subiu ao Céu; e se Ele está no Céu, no que diz respeito ao seu corpo, como pode Ele estar no pão? A Palavra de Deus ensina-nos que Ele foi, em todas as coisas, feito igual aos seus irmãos. Portanto não pode estar ao mesmo tempo em cada um dos milhares de altares onde a Eucaristia se está celebrando“. Lutero: “Se eu tivesse desejo de discutir assim, havia de procurar provar que Jesus Cristo teve uma esposa com olhos pretos, e que viveu no nosso belo país da Alemanha, pouco me importo com a matemática“. Zwínglio: “Não se trata aqui de matemática; trata-se de S. Paulo que escreveu aos Filipenses que Cristo tomara a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens“.

Vendo-se assim batido, Lutero ainda procurou refúgio na sua frase: “Meus caros senhores, visto que o meu Senhor Jesus diz: ‘Hoc estcorpus meum’, eu creio que o seu corpo está realmente ali“.

Por um momento parecia que até a paciência de Zwínglio se ia esgotar. Aproximando-se nervoso de Lutero, e batendo na mesa, disse: “Então o doutor sustenta que o corpo de Cristo está literalmente na Eucaristia, visto dizer: ‘O corpo de Cristo está ali’. Ali é um advérbio de lugar. Assim admite que o corpo de Cristo é de tal natureza que possa existir num lugar. Se está em algum lugar, está no Céu, donde se segue que não está no pão“.

Contudo, mesmo este argumento foi baldado. “Repito“, disse Lutero com calor, “que não tenho nada que ver com provas matemáticas. Logo que sejam pronunciadas sobre o pão as palavras de consagração, o corpo está ali, por mais perverso que seja o sacerdote que as pronuncia“.

A Fórmula de Concórdia
Em vista de uma tal obstinação (não podemos usar uma palavra mais branda), é de admirar que os reformadores chegassem a termos amigáveis; especialmente porque no fim da discussão Lutero recusou apertar a mão a seus irmãos suíços. Não recordaremos esta cena. Folgamos mesmo não ter espaço para a incluir nesta história. Basta dizer que os esforços do príncipe de Hesse para efetuar a reconciliação tiveram bom êxito até certo ponto. Lutero apresentou uma “Forma de Concórdia”, escrita em quatorze artigos, que foi assinada por ambos os partidos no dia 4 de Outubro de 1529. Os reformadores suíços cediam nobremente a Lutero em todos os pontos em que podiam fazer sem violar as suas próprias consciências; mas esta mesma condescendência tornou a sua vitória mais completa. Comentando o procedimento do grande reformador na conferência de Marburgo, diz o deão Waddington: “Afinal de contas ele perdeu a sua influência e reputação por causa daquela controvérsia. Pelo seu modo imperioso e estudo sofismado, enfraqueceu as afeições e o respeito de um grande partido de admiradores inteligentes. Muitos agora começaram a ter uma opinião menos elevada do seu talento e da sua franqueza. Em lugar da abnegação e magnanimidade que tanto brilho tinham dado aos seus primeiros esforços, parece que uma vã arrogância tomara posse de seu espírito; e foi por ele se entregar a essa ignóbil paixão que a Alemanha e a Suíça se separaram quando podiam ter vivido unidas. Ele deixou de ser o gênio da Reforma. Descendo desta magnífica posição, donde tinha dado luz a toda a comunidade evangélica, tornou-se agora o mais poderoso dos partidos dos reformadores, mas destinado no futuro a sofrer revezes e abandonos, que fizeram com que o nome de luterano fosse concedido a um número insignificante de protestantes“.

Morte de Zwínglio
Quando Lutero se recusou a estender a mão ao seu irmão suíço, no castelo de Marburgo, mal pensava ele que, dentro de um ano, toda a oportunidade de a fazer passaria. No entanto assim foi. Zwínglio morreu num campo de batalha, quando acompanhava o exército protestante, como capelão. Não tentaremos justificar a conduta dos protestantes suíços em pegar em armas contra os seus inimigos. As Escrituras ensinam-nos que “ao servo do Senhor não convém contender” e podemos estar certos de que nunca deu bom resultado o emprego das armas carnais nos conflitos espirituais da igreja. Na batalha de Cappel, onde Zwínglio perdeu a vida, vinte e cinco ministros cristãos foram mortos nos campos de batalha! O grande reformador foi ferido logo no começo da luta, quando se abaixara para dirigir algumas palavras de consolação a um moribundo. A morte não foi instantânea; e quando jazia exausto no chão, ainda o ouviram dizer: “Ah! que calamidade esta! Na verdade mataram o corpo, mas não podem alcançar a alma“. Oecolâmpade teve um grande pesar com a morte do seu amigo, e não lhe sobreviveu muito tempo. No ano seguinte foi vítima da peste, e assim no espaço de poucos meses desapareceram os dois principais agentes da Reforma Suíça: O ressentimento de Lutero não os pôde seguir à campa, e escrevendo a Henrique Bullinger, dizia-lhe: “A morte deles encheu-me de tão intensa tristeza, que eu próprio estive quase a morrer também“.


A morte de Zwínglio / Fonte: Alamy.com

Últimos Anos de Lutero
Porém a hora de Lutero ainda não tinha chegado. O Senhor tinha outra obra para o seu querido servo: e durante mais de quinze anos o doutor de Wittenberg prosseguiu nos seus trabalhos, desenvolvendo, com as suas orações fervorosas, os seus sábios conselhos, a sua generosa simpatia, a sua ardente eloquência, e a sua hábil pena a obra que tinha tido o privilégio de começar. Os seus últimos dias foram tranquilos e cheios de paz; e a sua vida doméstica não era a menor das suas últimas alegrias. Foi abençoado com uma fiel esposa, sua companheira e a sua consolação em muitos desgostos e dificuldades, e os seus filhos eram o orgulho de seu coração. Temos notícias de uma anedota que lança nota brilhante sobre Lutero no meio da sua família. Ao entrar inesperadamente um dia no seu quarto, um dos amigos encontrou-o com um dos seus filhinhos escarranchado nas suas pernas, e rindo desmedidamente por o pai o estar fazendo “galopear”. Lutero pediu desculpa ao amigo, por não se levantar para o saudar, dizendo: “O meu pequeno vai para Roma levar um recado do seu pai ao papa, e eu não podia interromper a sua jornada“. Como tudo isto é belo, quando pensamos que procediam do homem que tinha abalado tronos e dado de pensar ao mundo inteiro!

Morte de Lutero
Uma disputa se tinha levantado entre os condes de Mansfield, e pediram-lhe o seu arbítrio. Isso fê-lo comparecer à sua terra natal. “Nasci e fui batizado em Eisleben“, disse Lutero a um amigo que o acompanhava, “seria curioso se eu ficasse e morresse aqui“. E assim aconteceu. Pela tarde queixou-se de uma opressão e dor no peito, e, embora se sentisse aliviado com umas fomentações quentes, a opressão voltou mais tarde. Às nove horas encostou-se e dormiu até as dez. Ao acordar foi para o seu quarto, e, depois de dar as boas-noites aos que o rodeavam, acrescentou: “Orem pela causa de Deus“. As dores continuavam a aumentar e, entre uma e duas horas da madrugada, levantou-se e foi para o seu escritório sem ajuda de ninguém. Ele sabia que o seu fim estava próximo, e repetiu amiúde estas palavras: “Oh! meu Deus! Nas tuas mãos ponho o meu espírito!” Entretanto muitos tinham tido conhecimento do seu estado, e em breve se viu rodeado de seus três filhos, vários amigos, o conde e a condessa Albert, e dois médicos. Então começou a transpirar, o que lhes deu algumas esperanças, mas ele disse: “É um suor frio, o precursor da morte; em breve darei o último suspiro“. Então pôs-se a orar, e concluindo repetiu três vezes: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito: Tu me remiste, ó Senhor Deus da verdade!” Em seguida Jonas perguntou-lhe: “Querido pai, confessas que Jesus Cristo é o Filho de Deus, e nosso Salvador e Redentor?” Lutero respondeu audível e claramente: “Confesso“. Foi esta a sua última palavra, e assim, de madrugada, rendeu o espírito a Deus. O seu corpo foi removido para Wittenberg no dia 22 de Fevereiro, e Pomerano falou à imensa multidão que, no dia seguinte, se reuniu para presenciar o seu funeral. Melanchton em seguida fez uma oração fúnebre. Mas, para honra dos dois oradores, notou-se que os seus sentimentos eram mais notáveis do que a sua oratória, e as suas piedosas tentativas para consolar a tristeza dos outros não eram mais do que uma demonstração do seu próprio pesar.


Lutero em seu leito de morte / Fonte: Lexikus.de

O Imperador Quer Outro Concílio
O imperador Carlos havia muito tempo que esperava a morte de Lutero, e muitas vezes se lamentara de o ter deixado partir de Worms depois da sua confissão perante o Conselho ali realizado. O desejo do imperador, desde o Conselho de Augsburgo, tinha sido sempre que o papa convocasse um grande concilio, com o fim de inquirir sobre os abusos da antiga igreja, e assim proporcionar aos dissidentes a volta à obediência ao papa. Por este meio esperava destruir a obra de Lutero, e restaurar a paz e a unidade no império. Porém sempre aparecia uma coisa ou outra para contrariar os seus desejos, e os sucessivos papas para quem apelara pareciam todos hesitar sobre o caso. As ameaças que tinha feito aos protestantes no fim do Conselho ainda os pôs mais de alerta, e uniram-se imediatamente para sua mútua defesa. Desde então tinham sempre diligenciado fortalecer esta união, e assim, apesar dos conselhos de Lutero, os protestantes tinham-se tornado um partido inteiramente político. Isto, em poucas palavras, descreve o estado das coisas na Alemanha até o período a que temos chegado.

A morte de Lutero trouxe novas esperanças ao partido católico; o imperador entendeu que era chegada a ocasião oportuna de satisfazer o seu desejo, e que podia impunemente ser convocado o concilio de que havia tanto tempo falara. Nos atos deste concilio, que se reuniu em Trent, cidade do Tirol, não podemos entrar. Os protestantes recusaram-se a reconhecê-lo, e o imperador tomou esta recusa como pretexto de declarar guerra contra eles. A história desta guerra e de outros acontecimentos mais que seguiram não são coisas que se possam tratar numa breve descrição, como esta, mas pertence à História, a uma história mais ampliada e de mais pretensão. Também devemos deixar a outros historiadores a descrição do progresso ulterior da Reforma na Alemanha e Suíça, e dos esforços para impedir esse progresso. As nossas referências devem ficar por aqui. Vimos a Reforma firmemente estabelecida naqueles países; e ao mesmo tempo que notamos a sua poderosa influência para o bem, também não omitimos os erros que a acompanharam. Deus permitiu estes para reprimir as vanglorias e para tirar o orgulho dos homens. Vamos concluir as nossas observações sobre este período importante e cheio de interesse, lançando uma rápida vista de olhos pelo progresso da Reforma em outros países.

 

Fonte: A História do Cristianismo - Dos Apóstolos do Senhor Jesus Cristo ao Século XX, A. Knight & W. Anglin, Ed. CPAD


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