AS REFORMAS RELIGIOSAS (DISCIPLINA HISTÓRIA MODERNA DO CURSO LIC. HISTÓRIA / FAC. ESTÁCIO DE SÁ)


Categoria: Historiografia
Imagem: Ilustração de Martinho Lutero divulgando suas 95 teses - Guia do Estudante
Publicado: 30 de Abril de 2016, Sábado, 21h05

Diversas vezes, temos ressaltado, durante nosso curso, a importância da Igreja Católica não só na Idade Média, mas também durante a modernidade. Podemos perceber que a Igreja não se mantém inerte ao conjunto de transformações sociopolíticas no mundo que a cerca, mas se adapta e cria novos mecanismos para sobreviver e manter seu poder.

Entretanto, se na Idade Média o catolicismo constituía o instrumento de unidade em uma realidade fragmentada, com a formação dos Estados nacionais e o estabelecimento de novos signos de identidade – fronteira, idioma, moeda – estabelecido pelos reis, esta não é mais a realidade do mundo moderno. Não que a igreja tenha perdido completamente este papel, mas agora teria que dividi-lo frente a um novo processo que se ampliava e conquistava novos adeptos, mesmo entre os reis, a Reforma Protestante.

É importante ressaltar que o que está em jogo não é o fim do cristianismo, mas novas maneiras de entendê-lo e praticá-lo. Nesse sentido, a reforma parte dos princípios católicos e, a partir deles, busca novas maneiras de aproximar o homem de Deus. Isso acontece porque a fé não diz respeito somente ao campo espiritual, mas, sobretudo, ao campo político.

Às vezes, temos dificuldade em compreender estas questões, pois elas parecem muito distantes do mundo que vivemos. Mas só parecem. Mesmo no século XXI, a força da religião é inegável, seja ela cristã ou não. Países muçulmanos ainda possuem líderes políticos que são também líderes religiosos, como o caso dos aiatolás no Irã. O Dalai Lama é o líder espiritual do Tibet, mas desde que o país passou a ser dominado pela China, na década de 50, o Dalai Lama foi expulso, mas não perdeu, para os tibetanos, seu papel de líder político do país, mesmo distante e impedido de retornar. Os Estados pontifícios desapareceram, mas o Vaticano sobreviveu, tendo o papa como líder de seu Estado. Cada vez mais, a religião evangélica se expande, sobretudo na América, e seus membros fazem parte de importantes órgãos decisórios, como câmaras e senados ao longo de todo o continente.

No nosso tempo, de avanços tecnológicos, “milagres” médicos, internet e globalização, o campo espiritual não recuou, tampouco desapareceu, mas se adaptou e ganhou força, nos mais diferentes setores da sociedade e da política. Evidenciar esta questão nos aproxima do processo histórico ocorrido no período reformista. Faz-nos entender que também somos agentes históricos, tanto quanto as grandes figuras da época, como João Calvino e Martinho Lutero.

As grandes transformações históricas são como correntes, com vários elos entre si. Para falar de reforma, temos que, antes de tudo, falar das transformações políticas e econômicas do Estado moderno.

Com o renascimento urbano e comercial, cada vez mais a burguesia se afirmava como classe, cujos interesses não podiam mais ser ignorados. A aliança rei/burguesia elevou esta classe a um novo patamar, concedendo-lhe poder político. É certo que este poder político era limitado tanto pela existência de uma nobreza que compunha a corte, quanto pelo clero, que tinham enorme influência nas decisões reais.

A ascensão burguesa gerou uma contradição: ao passo que obtinham poder econômico, viam o lucro e a usura, fontes de sua riqueza, serem veementemente condenados pela religião que seguiam, o catolicismo. A vida espiritual entrava em choque com a realidade em que viviam. Como princípio, a Igreja Católica condenava o lucro e a usura. Vamos ver seu significado:

Lucro – ganho oriundo em uma relação comercial. É a diferença entre o valor de produção da mercadoria e seu preço de venda;
Usura – lucro exagerado, no qual se paga mais do que o valor real do bem;

A usura, portanto, condena o próprio lucro, e este era um tema constante nos sermões católicos. O que acabava gerando uma outra contradição. A igreja condenava a usura, mas era sua principal beneficiaria. Pregava o voto de pobreza, mas era a mais rica instituição da Europa. Tinha restrições ao comércio, mas vendia indulgencias, o que quer dizer que, por determinada quantia, era possível receber o perdão pelos pecados. Praticava a simonia, que é o comércio de relíquias ditas sagradas, como pedaços da cruz de Cristo e ossos e objetos de santos. Ou seja, o discurso católico passava muito longe de sua pratica real. Além disso, ao recomendar e valorizar a pobreza alheia, a igreja cumpria um importante papel no campo social. A pobreza terrena e uma vida de virtudes e obediência tinham como recompensa a vida eterna, na esfera celestial. Isso atingia, sobretudo os camponeses e servos, que toleravam uma vida de privações esperando serem recompensados por ela após a morte. A riqueza e a prosperidade burguesas era um problema, pois traziam um novo sentido de riqueza e conforto que os camponeses desconheciam. A igreja ostentava seu luxo não só na grandiosidade de seus templos, mas também como proprietária de terras, sendo ela própria uma poderosa senhora feudal. Na organização dos estados nacionais, isso se torna um entrave e países como a Inglaterra, ao adotar o protestantismo e se tornar anglicano, tem como uma de suas primeiras medidas o confisco das terras eclesiásticas. O que foi um duro golpe no poder econômico da igreja naquele país.

Nesse panorama, podemos inferir que a reforma ocorre não só devido a um contexto político econômico, mas também espiritual. É a ascensão burguesa, o renascimento comercial e a centralização dos Estados que criam as condições para que ela ocorra e se propague. As críticas ao modo de proceder da Igreja Católica não começam com os grandes reformistas como Lutero e Calvino. Suas doutrinas ganharam destaque e adeptos porque ocorreram em uma conjuntura propícia. Entretanto, a contestação ao catolicismo não era nova.

No século XII, floresceu na França o movimento cátaro. Os cátaros acreditavam na dualidade, no bem e no mal e reivindicavam uma vida de pureza, pobreza e celibato dos clérigos. A Igreja considerava o movimento herético, e no século XIII ocorreu as cruzadas albigenses, com o objetivo de reconduzir a população aos princípios da fé católica. Deve-se aos cátaros a criação da Inquisição. Um equívoco comum é acharmos que a Inquisição passou a existir somente no período da contrarreforma. Na verdade, ela ganha impulso com a contrarreforma, mas já existia desde o século XII.

Além do movimento cátaro, um dos precursores da reforma foi Jan Huss. Huss inspirou-se em outro teólogo, o inglês John Wyclif que se dedicou à tradução da Bíblia para o idioma inglês. Wyclif fazia enormes críticas aos abusos do papado, ao luxo da Igreja e ao estilo de vida do clero que vivia de forma opulenta com o dinheiro dos pobres. Estas críticas encontraram eco na região da Boêmia onde Huss vivia. A Boêmia era parte do Sacro Império Romano Germânico que por sua vez tinha relações com a Igreja. A punição foi implacável. Além de excomungado, Huss foi queimado na fogueira.

Dois pontos chamam atenção em especial no comportamento da Igreja:

1 – Primeiro, no caso de Wycliff, ao traduzir a Bíblia para o inglês, ele permitia que mais pessoas tivessem acesso a ela, já que grande parte da população não dominava o latim. Isso tornava possível novas interpretações do documento sagrado e, portanto, novas ideias sobre ela.

2 – O outro ponto é a punição de Huss. Se considerarmos a noção de contrato social, que os iluministas se dedicaram a estudar com afinco, cabe ao Estado o uso da força e da violência. O que inclui o direito de julgar e punir crimes e transgressões. Quando a Igreja assume o papel que, por direito, pertence ao Estado, está demonstrando a fusão entre religião e política.

O movimento reformista possui muitas facetas. Mas o interessante é perceber que estes reformistas não eram pensadores laicos. Ao contrário, normalmente eram membros da Igreja, teólogos, professores das universidades, pensadores que estavam ligados ao catolicismo e conheciam a fundo seus dogmas. É o caso de Martinho Lutero.

Lutero vivia no Sacro Imério Romano Germânico e, como teólogo, vivendo em um país onde Igreja e Estado se confundiam, passou a estudar profundamente a Bíblia. Além de perceber as contradições no seio da Igreja, Lutero se concentrou nos ensinamentos bíblicos de Paulo, no Novo Testamento e na obra de Santo Agostinho. Ele parte de um princípio que é parte integral do ensinamento bíblico, a salvação pela fé. Segundo a carta aos Efésio, escrita pelo apóstolo Paulo:

Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie.” (Efésios 2:8-9).

De acordo com essa passagem, Lutero incentiva não só a consolidação da fé individual, mas tira a ideia de que a Igreja é intermediária entre o homem e Deus. Em 1517, ele fixa na porta da catedral de Wittenberg suas 95 teses, na qual defende um contato mais próximo entre o homem e Deus, o incentivo a fé e a leitura da Bíblia. Um de seus projetos era a tradução dos escritos bíblicos para o alemão, a exemplo do que Wyclif fizera com o inglês, permitindo o maior acesso ao texto bíblico.

Dentre estas 95 teses, além do principio fundamental de que a salvação só pode ser obtida através da fé em Jesus Cristo, há o estimulo a virtude e a vivencia cristã, mas também o questionamento da salvação através da Virgem Maria e dos santos. Maria perde seu papel de intercessora e sua adoração, bem como adoração de santos e imagens é fortemente condenada.

Segundo o próprio Lutero:

Assim vemos que a fé basta a um cristão. Ele não precisa de nenhuma obra para se justificar. Se ele não precisa de nenhuma obra, ele está certamente desobrigado de todos os mandamentos e de todas as leis; se está desobrigado deles é certamente livre. Esta liberdade é a liberdade cristã, é unicamente a fé que a cria, o que não quer dizer que possamos ficar ociosos ou fazer o mal, mas que não precisamos de nenhuma obra para nos justificar e alcançar a felicidade.” (LUTERO, Martinho. Obras. Citado por ARRUDA, José Jobson de A. e PILETTI, Nelson. Toda a história. SP: Ática, 1999. P. 168)

Cada individuo possui a capacidade de estar em contato direto com Deus, sem que seja necessária a intermediação da igreja. O papel do sacerdote é conduzir e amparar seus fieis, não sendo, contudo, responsáveis pela salvação destes, que é única, pessoal e intransferível. Tampouco pode ser comprada ou vendida, acabando com o intenso comércio do perdão, característico da igreja católica.

Outro dogma a ser questionado foi o sacramento da comunhão. Para os católicos, são sete: o batismo, a crisma, a eucaristia ou comunhão, a penitencia através da confissão dos pecados, o casamento, o ordenamento, pelo qual um indivíduo se consagra padre e a extrema unção. O Luteranismo mantem dois, batismo e comunhão. Mas para os católicos, ocorre a transubstanciação do pão e do vinho no corpo e na carne de cristo. Para os luteranos, Cristo está presente na comunhão, mas não ocorre a transubstanciação de seu corpo e sua carne. Dessa forma, os dogmas católicos são postos em xeque, o que leva a igreja a perseguir Martinho Lutero.

Em 1520, recusando-se a voltar atrás em suas ideias, ele é excomungado pela igreja. O imperador do sacro império, Carlos V, também o condenava através da Dieta de Worms, uma assembleia que reunia os representantes dos estados imperiais. Mas o repúdio ao luteranismo não era uma unanimidade. Muitos príncipes do sacro império desejavam diminuir e limitar o poder eclesiástico no estado. Esse desejo tinha dois objetivos: diminuir a influencia da igreja era, por extensão, diminuir também a interferência do imperador nos reinos.

No sacro Império, portanto, o luteranismo criou um impasse. Enquanto o imperador o condenava, diversos países o estimulavam e incentivavam abertamente. Para solucionar o problema, em 1555, a Dieta de Augsburgo concedeu autonomia a cada príncipe para adotar sua própria religião em seus domínios. As ideias de Lutero se espalharam como um incêndio pela Europa. Além de novos seguidores, surgiram outros reformadores da fé católica. Aproximadamente em 1534, o francês João Calvino, a partir da reforma luterana, estabeleceu sua própria doutrina, o Calvinismo. Simplificando o culto e a arquitetura dos templos, Calvino criou uma doutrina acessível, baseado na chamada doutrina da predestinação.

A reação da Igreja Católica contra a reforma não tardou e a religião perdia adeptos a cada dia, especialmente entre a classe burguesa. Os burgueses estavam especialmente interessados nas novas doutrinas que se espalhavam pela Europa, por que:

– elas não condenavam o lucro, nem o comércio lícito;
– estimulavam o trabalho e a prosperidade de seus fiéis, o que vinha exatamente ao encontro dos anseios burgueses, aderindo ao protestantismo que, neste contexto, estava muito mais afinado ao modo de vida burguês do que a rigidez das doutrinas católicas;

Vendo seus templos esvaziarem e suas ideologias em risco, a Igreja Católica inicia o movimento de contrarreforma. No século XVI ocorreu o Concílio de Trento que, na prática, estabelecia as estratégias de reações católicas. Neste concílio, reafirma-se a importância da missa e do celibato eclesiástico. Reagindo a Lutero, é reafirmado a transubstanciação do pão e vinho no corpo e sangue da missa, no sacramento da comunhão, além de reforçar a hierarquia da Igreja e o culto aos santos.

Como medidas práticas, é fundada a Companhia de Jesus, também conhecida como ordem jesuíta. Esta ordem foi criada a partir de princípios militares e não era à toa que seus membros eram chamados de Soldados de Cristo. Este exército tinha uma missão: levar a fé católica aos povos pagãos, especialmente na América. Se na Europa a Igreja perdia terreno, com o apoio dos reinos ibéricos, o mesmo não iria acontecer nas terras coloniais.

Além disso, a Igreja instituiu o Index Proibithorum, uma lista de livros proibidos e cuja posse e leitura constituíram uma heresia. A ideia de heresia irá, inclusive, ganhar contornos muito amplos. Inicialmente, podemos conceituar heresia como filosofias ou doutrinas que se opunham à Igreja Católica. Com o Concílio de Trento, mesmo a posse de livros proibidos passa a ser considerada uma heresia.

O que estamos presenciando é uma radicalização da Igreja. Entre escolher se adaptar e rever sua ideologia, ela optou por fortalecê-los e torná-los ainda mais inquestionáveis. José Antônio Saraiva, em seus trabalhos sobre os cristãos novos em Portugal, define a inquisição como uma verdadeira fábrica de cristãos novos. Os processos, julgamentos e confisco de bens cresciam em progressão geométrica, o que fortalecia a Igreja e instaurava o terror na população.

As mudanças nas mentalidades costumam ser fenômenos de longa duração. Não foi este o caso da reforma. As mudanças provocadas foram tão intensas e profundas que ultrapassaram oceanos, chegaram à América e à Ásia e alteraram completamente o panorama do mundo moderno. Mas, como todo processo histórico, deve ser entendida em seu contexto de produção e no conjunto de fatores que levaram não só ao movimento reformista, mas também à reação católica. Restringi-lo ao campo de uma mudança ideológica ou no plano das ideias seria simplificá-lo, assim como vê-lo como fruto da necessidade de uma nova classe social. Todos os fatores atuaram para que a reforma fosse definitiva e a fé na modernidade adquirisse novas práticas e novas representações.

 

Fonte: Aula 10 da disciplina História Moderna: Da transição do Feudalismo às Reformas Religiosas. 3o Período do Curso Licenciatura em História, Universidade Estácio de Sá.


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