EDUCAÇÃO, ÉTICA E CIDADANIA NA OBRA DE MARTINHO LUTERO: CONTRIBUIÇÕES PROTESTANTES PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NUMA APROXIMAÇÃO COM PAULO FREIRE


Categoria: Martinho Lutero, Filosofia e Sociologia
Imagem: Fundação Democrata Cristã
Publicado: 13 de Fevereiro de 2014, Quinta Feira, 18h23

O presente texto faz uma leitura interpretativa sobre as concepções de educação, ética e cidadania na obra de Martim Lutero. Dos seus principais escritos sobre educação buscamos elucidar os conceitos de educação, ética e cidadania e as inter-relações entre seus significados. Neste contexto nossa pesquisa se constitui numa contribuição para a História da Educação e para uma ressignificação da reflexão atual sobre ética e cidadania e seus vínculos com a educação, principalmente, a partir das origens do protestantismo histórico.

Trabalho realizado por: Alvori Ahlert.
Mestre em Educação nas Ciências, pela UNIJUÍ, RS, Doutor em Teologia, Área Religião e Educação pelo IEPG/EST, RS, Professor Adjunto da UNIOESTE, membro do GEPEFE e do Grupo de Pesquisa Cultura, Freonteira e Desenvolvimento Regional. alvoriahlert@hotmail.com, alahlert@brturbo.com.br e alvori@unioeste.br.

1 Introdução
Os séculos XV e XVI marcaram o nascimento da Modernidade. Foi o período da Renascença, um movimento intelectual, estético e social que trouxe profundas modificações, e da Reforma, que significou uma verdadeira revolução no contexto da época. Com relação à Reforma, Eby afirma que, “Nenhum aspecto da vida humana ficou intato, pois abrangeu transformações políticas, econômicas, religiosas, morais, filosóficas, literárias e nas instituições, de caráter definitivo; foi, de fato, uma revolta e uma reconstrução do Norte”. (EBY, 1976, p. 1) Importante contribuição neste movimento teve Martim Lutero, que nasceu a 10 de novembro de 1483, em Eisleben, na Alemanha. Foi educado de modo severo. Em 1501 entrou na Universidade de Erfurt para estudar na Faculdade de Artes, que concluiu com o título de Mestrado em janeiro de 1505. Lá estudou a filosofia aristotélica, na tradição nominalista. Já começava ali sua oposição com o tomismo. Enquanto lecionava na Faculdade de Artes começou a estudar Direito. Mas ainda no mesmo ano decidiu tornar-se monge, entrando no mosteiro agostiniano de Erfurt. Ali aprendeu as posições dogmáticas do occamismo. Formou-se monge em 1507 e, dois anos depois, começou a lecionar sobre a ética de Aristóteles na universidade. Em 1510 iniciou seu confronto com o poder papal. Foi para Roma para resolver discussões internas dos agostinianos. Ali ficou escandalizado com o luxo da Igreja e com a degeneração da Igreja. Depois se instalou em Wittenberg para lecionar Teologia na Universidade, onde passou a maior parte de sua vida intelectual.

Neste período cresceu o confronto com a Igreja romana até que, em 31 de outubro de 1517, publicou 95 Teses. Elas atacavam a venda de indulgências e expunham seu posicionamento teológico. Suas Teses foram amplamente divulgadas. Ferrenho opositor do tomismo, neste período, Lutero também rompeu com a teologia occamista. Em 1517, num debate sobre a escolástica, condena a doutrina da graça occamista e a fusão entre teologia e filosofia. No ano 1520, Lutero realiza uma intensa produção intelectual. Em À Nobreza Cristã da Nação Alemã acerca do Melhoramento do Estado Cristão, dirige-se aos leigos que dirigiam o “Estado cristão”, senhores, príncipes e imperador. Neste escrito sustenta o sacerdócio geral de todos os crentes, pois acredita que todos são sacerdotes e ministros perante Deus, apenas com funções diferentes. Separa as funções do clero, ordenados para anunciar o Evangelho e distribuir os Sacramentos, das do poder temporal, ou secular que tem a tarefa de administrar a sociedade e manter a ordem. Na primeira parte deste escrito, ataca severamente o Papa e seu colegiado, não a Igreja como tal, condenando suas doutrinas eclesiais e sociais. Na segunda parte, expõe suas propostas sobre as reformas necessárias na Igreja, na educação e na sociedade. Este escrito teve sua primeira edição de 4.000 exemplares esgotada em uma semana. Sua polêmica com o papado aparece forte num escrito do mesmo ano Do Cativeiro Babilônico da Igreja. Neste ano também redige seu livro Da Liberdade Cristã. Neste sustenta que o cristão é livre de todas as coisas, mas servidor a todos através do amor. Estas posições levaram o monge agostiniano para uma Dieta (Assembléia Imperial) na cidade de Worms, convocada pelo Imperador Carlos V. A Igreja exigia-lhe uma retratação sobre seus escritos. Porém, Lutero não pode realizá -la, conforme ele mesmo argumenta: “Não posso e nem quero revogar o que eu disse, a menos que seja convencido de erro por meio da Palavra da Bíblia e por outros argumentos claros, porque não é aconselhável agir contra a consciência. Aqui estou; de outra maneira não posso. Que Deus me ajude. Amém.” Por causa disso o Imperador julgou Lutero um fora da lei. Foi proscrito e, a partir daí, corria risco de vida. Foi acolhido pelo Duque Eleitor da Saxônia, que o manteve sob sua custódia no Wartburgo. Ali permaneceu escondido. Nesta reclusão forçada, se pôs a traduzir o Novo Testamento do grego para o alemão. Também prefaciou vários livros da Bíblia na busca de ajudar em sua interpretação. À medida que o movimento reformista se espalhava, Lutero voltou para a Universidade de Wittenberg para influenciar o rumo dos acontecimentos. Foi pregador, influenciando enormemente a consciência do povo alemão. Ajudou a promover uma ampla reforma educacional, criando escolas para meninos e meninas, ginásios e universidades.

Entretanto, não devemos desconsiderar que Thomas Nipperdey nos alerta para o grande número de armadilhas que, ao longo da história, tentaram seqüestrar ou enquadrar em sua linha de pensamento o reformador Martin Lutero. A armadilha liberal do século XIX tentou transformá-lo num grande libertador, num grande lutador contra as hierarquias. A armadilha conservadora transformou-o num fato histórico quase banido da ordem do dia. A armadilha nacional-protestante afirmava para si que Lutero, antes de qualquer outra coisa era um alemão. Em meio a isso, Nipperdey lembra que Lutero era um homem do seu tempo medieval. Sua preocupação era uma preocupação arcaica: como posso encontrar o Deus da misericórdia? (Cf. NIPPERDEY, 1983, p. 13-14) Além disso, ele estava profundamente influenciado pelo pensamento agostiniano.

2 Educação e ética em Lutero
Os escritos mais pragmáticos sobre a educação foram: Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha, para que criem e mantenham escolas cristãs, publicado em 1524, e Uma prédica para que mandem os filhos para a escola, de 1530.1 Neles, estão afirmações sobre a necessidade urgente de uma ampla ação em favor da educação do povo.

Em Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha, para que criem e mantenham escolas cristãs, Lutero objetiva estimular e desafiar a sociedade para a responsabilidade com a educação e a formação da juventude. O desenvolvimento de um indivíduo temente a Deus, responsável e ético, com capacidade de vivenciar sua liberdade, requer pessoas bem instruídas. E Lutero percebe um abandono destes compromissos. A transição de um mundo medieval, onde tudo é abarcado pelo contexto religioso, para um mundo laico deixou as pessoas sem perspectivas, porque o velho modelo de vida estava desaparecendo e o novo ainda estava indefinido. Com isso houve um desinteresse pela educação.

Em primeiro lugar, constatamos hoje em todas as partes da Alemanha que as escolas estão abandonadas. As universidades são pouco freqüentadas e os conventos estão em decadência. […] Sim, porque o povo carnal se dá conta de que não pode mais colocar os filhos, as filhas e os parentes em conventos e instituições. Já não pode mais expulsá-los de casa e deixar que vivam às custas de estranhos. Por isso ninguém mais quer proporcionar ensino e estudo aos filhos. Dizem: Pois é, o que vão estudar se não podem tornar-se padres, monges e freira? Tem que aprender alguma profissão com que possam sustentar-se.

LUTERO, 2000a, p.8-9

Lutero não especifica uma concepção de educação nos seus textos. Ele está preocupado em primeiro lugar com a formação de pessoas para a vida eclesiástica. Mas sua visão comunitária leva-o a posicionar-se também sobre a formação geral. E, neste sentido, é possível detectar uma concepção de educação que visa à formação de um ser humano integral. Penso que dá para afirmar, guardadas as devidas distâncias no tempo e no espaço, que essa concepção premoniza a concepção freireana que vê na educação um processo de humanização do ser humano, uma forma do ser humano tornar-se mais ser humano. (FREIRE, 1987, p. 29-42) Lutero, ao fazer a distinção entre a pregação da palavra de Deus e a tarefa do governo secular em manter e governar para a paz, a justiça e vida temporal, afirma que o governo secular

[…] é uma maravilhosa ordem divina e uma excelente dádiva de Deus. Ele criou esse governo e quer vê-lo preservado, já que não pode abrir mão dele. Se não existisse, ninguém poderia sobreviver ao outro. As pessoas se devorariam entre si como fazem os animais irracionais. É função e honra do ministério da pregação transformar pecadores em verdadeiros santos, mortos em vivos, condenados em bem-aventurados, servidores do diabo em filhos de Deus. Da mesma maneira, é obra e honra do governo secular transformar animais selvagens em seres humanos e preservá-los como tais, para que não se tornem animais selvagens.

LUTERO, 2000a, p. 88

Fundamentado em textos bíblicos, Lutero preconiza uma educação que desenvolva um ser humano capaz de se relacionar mutuamente através da razão e não da força. “Toda a experiência na História prova: nunca a força, privada da razão ou da sabedoria, teve sucesso. […] não é o direito dos punhos, mas o direito da cabeça, não a força, mas a sabedoria ou a razão que deve reinar tanto entre os maus quanto entre os bons.” (LUTERO, 2000a, p. 90) Para ele, a educação deve receber todos os investimentos possíveis, pois a educação é a forma de elevar as conquistas humanas e não a guerra.

No entanto, se alguém der um ducado [moeda de ouro] para a guerra contra os turcos (mesmo que não atacassem), seria justo que doasse cem ducados para educação. Mas com estes ducados se poderia educar apenas um jovem, para tornar-se um adulto verdadeiramente cristão. Um verdadeiro cristão é melhor e mais útil que todos os seres humanos na terra.

LUTERO, 2000a, p. 11

Mas talvez o mais importante nos escrito de Lutero sobre educação para a atualidade esteja na sua concepção de um educação pública, universal e gratuita, para quem não pode custeá-la. Neste sentido, acertadamente Lorenzo Luzuriaga vê na Reforma a gênese da educação pública. “A educação pública, isto é, a educação criada, organizada e mantida pelas autoridades oficiais – municípios, províncias, Estados – começa, como dissemos, com o movimento da Reforma religiosa no século XVI.” (LUZURIAGA, 1959, p. 5) Em primeiro plano, a educação é tarefa dos pais, mas é compromisso precípuo das autoridades em todos os níveis, porque, na sua concepção, nenhum pecado mereceria maior castigo do que deixar de educar uma criança. (Cf. LUTERO, 2000a, p. 16) E educar bem as crianças significa ter uma estrutura social que garanta este acesso indistintamente para todas elas, isto é, também para as crianças pobres ou para as crianças cujos pais não dão valor nenhum à educação. Daí ser necessário manter gente especializada para esta tarefa, gente mantida comunitariamente. É tarefa do Estado garantir educação para todos.

Por isso certamente caberá ao conselho e às autoridades dedicarem o maior esforço à juventude. Sendo curadores, foram confiados a eles os bens, a honra, corpo e vida de toda a cidade. Portanto, eles não agiriam responsavelmente perante Deus e o mundo se não buscassem, com todos os meios, dia e noite, o progresso e a melhoria da cidade. Agora, o progresso de uma cidade não depende apenas do ajuntamento de grandes tesouros, da construção de muros, de casas bonitas, de muitos canhões e da fabricação de muitas armas. Inclusive, onde há muitas coisas desse tipo e aparecem alguns loucos, o prejuízo é tanto pior e maior para a aquela cidade. Muito antes, o melhor e mais rico progresso para uma cidade é quando tem muitas pessoas bem instruídas, muitos cidadãos sensatos, honestos e bem-educados. Estes então também podem ajuntar, preservar e usar corretamente riquezas e todo tipo de bens.

LUTERO, 2000a, p. 19

Lutero está adiantado em seu tempo quando pede da educação uma “perspectiva construtivista e lúdica” em meio a um tempo de educação opressora e sem prazerosidade. Apontando para uma educação integral, afirma que:

Pela graça de Deus, está tudo preparado para que as crianças possam estudar línguas, outras disciplinas e História, com prazer e brincando. As escolas de hoje já não são mais o inferno e o purgatório de nosso tempo, quando éramos torturados com declinações e conjugações. Não aprendemos simplesmente nada por causa de tantas palmadas, medo, pavor e sofrimento. Se levamos tanto tempo para ensinar às crianças jogos de tabuleiro, cantar e dançar, por que não usamos o mesmo tempo para ensiná-los a ler e outras matérias? Eles são jovens e têm tempo, são capazes e têm vontade. Falo por mim mesmo: se eu tivesse filhos e tivesse condições, não deveriam aprender apenas as línguas e História. Também deveriam aprender a cantar e estudar Música, com Matemática.

LUTERO, 2000a, p. 37-38

Ao comentar estes textos, Altmann aponta para a importância que Lutero teve para o desenvolvimento do processo educativo. Rompeu com a educação repressiva, introduzindo o lúdico na aprendizagem. Amarrou o estudo das disciplinas a um aprendizado prático. Também lutou por boas bibliotecas, dentro de sua ótica cristocêntrica. (Cf. ALTMANN, 1995, p. 205)

Assim, temos em Lutero o início da escola público-comunitária, ou seja, uma escola que deve ser tarefa dos pais, do Estado e de quem pode financeiramente ajudar a mantê-la. A grande tarefa da escola é a formação de um cidadão (entendido aqui como um habitante do burgo ou da cidade) honesto, responsável, capaz e preparado para todas as tarefas importantes que a nova divisão do trabalho e a organização das cidades em crescimento requeriam paulatinamente. “Uma cidade tem que ter pessoas assim. A sua falta é sempre uma grande necessidade e a queixa mais freqüente.” (LUTERO, 2000a, p. 20) Com este pioneirismo em educação Lutero está muito à frente de seu tempo, o que, no nosso entender, não tem sido suficientemente reconhecido pela historiografia educacional.

Evaldo Pauly chama a atenção para uma questão importante ainda não pesquisada suficientemente pela História da Pedagogia. Trata-se da relação do movimento da Reforma com a Educação Popular. Houve, neste período, calcado na possibilidade de divulgação rápida de idéias e concepções através da imprensa descoberta por Gutemberg, uma sede pela aprendizagem da leitura e da escrita. Ocorreu, num período de dois anos, um processo alfabetizador que elevou o número de alfabetizados de 8 milhões para cerca de 17 milhões, num universo de 50 milhões de europeus de então. “Ora, diz Pauly, se esses dados são verdadeiros, então é necessário reconhecer a existência de um imenso movimento popular de alfabetização, iniciado pouco antes da Reforma.” (PAULY, 2002, p. 148)

Acima de tudo, porém, Lutero é Mestre e Doutor, professor universitário. É na universidade que influencia mais profundamente o processo de formação e educação. Para Nipperdey, a universidade alemã foi uma instituição de formação do maior reconhecimento, pois formou uma visão de vida e de mundo, unindo a nação alemã a partir do que ensinavam professores, pastores e demais profissionais egressos das universidades. Estando a Teologia ligada às universidades pluralistas (diversos cursos), sua interação intelectual fez surgir os modernos “ismos”: Pietismo, Idealismo, Liberalismo, Historismo, Psicologismo, Sociologismo, etc. Por um lado, ajudou no crescimento do secularismo na Europa. Esta formação do saber e da consciência formou a cultura política alemã. Os alemães passaram a viver de teorias, ensinamentos e doutrinas. (NIPPERDEY, 19833, p. 19-20)

Em À Nobreza da Nação Alemã, acerca do Melhoramento do Estado Cristão (1520), um dos seus escritos sociais mais impactantes, Lutero propugna a urgência de uma reforma universitária que expulsasse as teorias aristotélicas no processo de formação acadêmica.

As universidades também precisariam de uma boa e profunda reforma. Tenho que dizê-lo, aborreça a quem quiser. Afinal tudo o que o papa instituiu e estabeleceu somente está voltado para a promoção do pecado e do erro. Caso não receberem uma ordem diferente da de agora, que são as universidades senão aquilo que diz o livro de Macabeus? Ginásio para educação de jovens segundo ideais gregos (2 Macabeus 4.9, 12) com vida libertina, onde pouco se ensina acerca da Sagrada Escritura e da fé cristã, e onde regeunicamente o cego mestre cego, Aristóteles, inclusive mais do que Cristo. Meu conselho a esse respeito seria de se abolir por completo os livros de Aristóteles: Physicorum, Metaphysicae, De Anima, Ethicorum. (Das coisas Naturais, Física, Da Alma e Ética), (53) os quais foram até agora considerados como sendo os melhores, juntamente com todos os outros que se ufanam de coisas naturais, quando na realidade nada conseguem ensinar, nem das coisas naturais nem das espirituais. Além disso, até agora ninguém compreendeu sua opinião, sobrecarregando em vão tantas almas e ocupando tanto tempo precioso com trabalho, estudo e gasto inútil. Devo dizer que o conhecimento de um oleiro acerca das coisas naturais é maior que aquilo que está escrito nesses livros. Dói-me o coração de ver que esse maldito, arrogante e astucioso pagão seduziu tantos dos melhores cristãos com suas falsas palavras e os fez de bobos.

LUTERO, 1984, p. 129-130

A partir disso, sugere uma reforma em todos os cursos, Teologia, Medicina, Direito, etc. Algumas dessas idéias foram colocadas em prática por seus sucessores, como Felipe de Melanchton. “Este é o programa da reforma religiosa das universidades. Ao preconizar observação direta da natureza, incorporou propostas dos humanistas e contribuiu para o progresso científico.” (BECK, 1996a, p. 35) Contudo, no final do século XVI o confronto da teologia luterana nas universidades com outras teorias foi produzindo “teologias luteranas”. Para acomodarem-se os conflitos entre essas diferentes posições, caiu-se num “escolasticismo luterano”. As idéias e ideais de Lutero foram seqüestradas. Nasceu e cresceu o luteranismo. Gonzales assim se refere a este período:

Outra característica da escolástica protestante, e que a fazia semelhante à medieval, era seu uso de Aristóteles, Lutero havia dito que, para ser teólogo, era necessário desfazer-se de Aristóteles. Mas, por fim do século dezeseis, houve um despertar no interesse pela filosofia aristotélica e logo quase todos os teólogos luteranos estavam empenhados em expor a teologia de Lutero em formas da metafísica aristotélica. Ainda mais, alguns deles faziam uso das obras filosóficas dos jesuítas, que também tinham se dedicado a fazer sua teologia sobre a base de Aristóteles. Portanto, ao mesmo tempo que em conteúdo, a escolástica protestante opunha-se radicalmente ao catolicismo romano, em seu tom de metodologia se parecia muito com a teologia católica da época.

GONZALES, 1981, p. 190

O posicionamento ético de Lutero provém do seu retorno à Sagrada Escritura, conseqüentemente, do Decálogo.2 Os Dez Mandamentos são para ele a base ética para a convivência humana de forma justa e ordeira. Sua vivência produz as boas obras para o exercício do Reino de Deus e não para ganhá-lo ou merecê-lo.

Lutero opõe-se à “ética paternalista cristã” em vigor desde a europeização do cristianismo. Em À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca do Melhoramento do Estado Cristão, ele critica o sistema de mendicância que se espalhava por toda a Europa. Propôs que o problema da pobreza fosse resolvido pelos Estados e municípios em consonância com as comunidades. Ataca os ricos que vivem às custas do trabalho dos outros. Remete para o apóstolo Paulo, que diz: “Se alguém não quer trabalhar, que também não coma”. À sociedade de sua época retransmitiu a posição de Jesus: “Digno é o trabalhador do seu salário.” (A BÍBLIA, Lucas 10.7)

Em sua luta para que o povo tivesse acesso à formação intelectual, Lutero exigiu do Estado a responsabilidade educacional dos meninos e meninas. Mas não esqueceu que a família tem papel fundamental no desenvolvimento da criança. Lutero queria todos os cidadãos bem preparados, para todas as tarefas na sociedade. Da sua maneira propôs uma escola cristã que visasse, não uma abstração intelectual, mas a uma educação voltada para o dia-a-dia da vida, na qual o ser humano é visto no todo da Criação.

No âmbito da economia fez duras críticas à usura que se desenvolvia vorazmente naquele período. Ataca o luxo dos ricos. “Em primeiro lugar seria sumamente necessária uma ordem e resolução geral na Nação Alemã contra o luxo e os gastos excessivos em roupas, razão do empobrecimento de tanta nobreza e gente rica.” (LUTERO, 1984, p. 138) Prega, escreve e exorta aos pastores para pregarem contra a usura, pois entende que a mesma é a maior desgraça da nação alemã. Para ele os juros são o maior símbolo e sinal do pecado, pois levam à ruína de bens seculares e espirituais ao mesmo tempo. Propõem que se ponham rédeas na família dos Fugger, principais no enriquecimento através do empréstimo de dinheiro. (Cf. LUTERO, 1984, 1339-140) Ataca o comércio que pratica preços além do valor da mercadoria. “Lutero”, diz Marx, “está de Proudhon. Não se deixa enganar pela distinção entre empréstimo e venda, pois em ambos os casos busca e descobre o rastro da usura. O mais notável de sua crítica é que, em seus ataques, entende principalmente que o interesse já esteja fazendo parte integrante do capital.” (MARX, 1974, p. 246) Marx dedica longas páginas a Lutero em sua História Crítica da Teoria da Mais-valia, considerando Lutero como o primeiro grande economista que fez a crítica à mais-valia.

Lutero não espiritualiza a realidade. Já no contexto do debate sobre as boas obras, onde confronta a sociedade com as 95 Teses, manifesta sua luta pedagógica cristã no sentido de ensinar aos cristãos a necessidade de inclusão para se vencer a pobreza e a mendicância. “Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.” (LUTERO, 1984, p. 38) Nesse sentido, mais incisiva ainda é a Tese 45. “Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências, obtém para si, não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.” (LUTERO, 1984, p. 9) Ao explicar as petições do Pai Nosso, mostra o quanto a vida humana precisa de condições boas de desenvolvimento. À pergunta sobre o significado da quinta petição “O pão nosso de cada dia nos dá hoje”, ele responde que o pão de cada dia é:

Tudo o que pertence ao sustento e às necessidades da vida, como: comida, bebida, vestes, calçado, casa, lar, campos, gado, dinheiro, bens, consorte piedosa, filhos piedosos, empregados bons, superiores piedosos e fiéis, bom governo, bom tempo, paz, saúde, disciplina, honra, leais amigos, vizinhos fiéis e coisas semelhantes.

LUTERO, 1983, p. 374

Para o reformador, a garantia destas necessidades da vida humana passa por uma educação ética. Esta perspectiva ética que tem seu lugar especial na educação foi construída no contexto de uma escola pública e comunitária. Isso significa que esta eticidade da educação tem implicações democráticas e participativas. Por isso Pauly afirma que “Lutero é um dos primeiros líderes religiosos a fundamentar uma ética democrática, embora não concebesse a democracia como sistema político.” (PAULY, 2002, p. 149)

A partir da sua teologia bíblica, Lutero concebe uma comunidade democrática. Uma comunidade religiosa que, conseqüentemente, constitui toda a vida de uma cidade ou burgo. Daí que a educação deveria tornar-se uma questão pública, social e familiar. Tanto na sua gestão quanto na sua manutenção e planejamento deve envolver e ocupar todos os cidadãos. Pois, conforme Pauly, “Para Lutero, a democracia começa e termina no município (o burgo), base geográfica da comunidade religiosa.” (PAULY, 2002, p. 149) Trata-se da construção de um poder local por meio de um processo participativo onde todos são responsáveis pela boa condução da comunidade.

3 Cidadania e educação em Lutero
A educação defendida por Lutero carrega uma profunda dimensão de cidadania. Sua perspectiva não se limitou a uma educação religiosa com vistas somente ao reino espiritual.3 Educação e cidadania pertencem uma à outra. Não se realizam independentes. Educação faz crescer a cidadania. Cidadania sabe da imprescindibilidade da educação. Assim como a escola é tarefa de todos: cristãos e não-cristãos, Igreja, Estado e família. Também a cidadania deve ser preocupação precípua dos cristãos, das comunidades e dos governantes. A educação deve, pois, formar para a cidadania. Deve habilitar os indivíduos para viverem a comunidade e a cidade.

Vive-se no fim do mundo feudal e a educação precisa dar condições para viver na cidade, no sentido moderno, onde a vida passa a ser regida por contratos. Daí também a importância do direito como profissão e o conhecimento das leis pelo povo. Lutero cita Justiniano para argumentar que as leis são a couraça e o armamento, enquanto que as armas são adorno e decoração (p.353). A educação para a justiça, portanto, não pode prescindir do conhecimento das leis que regulam a vida do cidadão emergente.

STRECK, 1996, 41

Lutero teve grande preocupação com a vida das pessoas nos novos aglomerados urbanos que se constituíam ao redor do comércio, dos serviços e da produção que se ampliou na transição do feudalismo para o modo capitalista de produção. Sua nova compreensão de fé exigia uma nova posição diante da pobreza e da mendicância. Em À Nobreza Cristã de Nação Alemã, acerca do Melhoramento do Estado Cristão, Lutero lança um desafio para que as cidades assumissem o enfrentamento da pobreza e viessem a garantir bem-estar, trabalho e cidadania para todos os seus habitantes.

Uma das necessidades mais urgentes é acabar com toda a mendicância na cristandade inteira. Ninguém mais deveria mendigar entre cristãos. Também seria fácil estabelecer uma ordem a esse respeito se o encarássemos com a devida coragem e seriedade. Ou seja: Cada cidade deveria prover os seus pobres, não admitindo nenhum mendigo estranho, seja qual for a sua denominação, quer peregrinos, quer ordens mendicantes. Cada cidade poderia alimentar os seus, e caso for muito pequena, dever-se-ia admoestar o povo nos povoados vizinhos a contribuir com sua parte, uma vez que de qualquer forma teriam que alimentar muitos vagabundos e sujeitos mal intencionados a pretexto de mendicância. Dessa forma também se poderia saber quais são realmente pobres ou não.

LUTERO, 1984, p. 122

Nesta obra, publicada em meados de 1520, Lutero expressa a amplitude de sua proposta de reforma. Esta não se resume às questões eclesiais. Lutero aponta para a necessidade de reformas que deveriam atingir simultaneamente a sociedade e a política de seu tempo. Uma nova ética social, política e econômica fazia-se necessária.

Os reformadores de Wittenberg, com seu deslocamento do locus da relação com Deus da caridade para a fé, foram capacitados a imaginar uma nova ética social com relação à pobreza. As reformas da sociedade fluíam da reforma da missa. É possível notar o impacto dessa vinculação quando se atenta para o background representado pelo sistema de assistência ou providência social da Idade Média tardia. (LINDBERG, 2001, p. 138)

LINDBERG, 2001, p. 138

Lutero também propôs uma reforma política, econômica e social. Juntamente com sua defesa em favor de uma educação que alcançasse todos os seres humanos sem discriminação, também buscou a instituição de novas regras nas relações político-econômicas, que pudessem garantir a inclusão de quem continua ou estava sendo alienado no novo modelo econômico emergente. Em 1520, proferiu seu Sermão sobre a usura, publicado sob o título “Comércio e Usura”, no qual discute economia política face aos graves problemas éticos que percebe nas novas relações comerciais capitalistas. Ataca a forma de fixação de preços pelos comerciantes. Estes, movimentados pela ganância e o lucro fácil, não olham para a necessidade do povo e impõem preços às mercadorias que o povo não pode pagar. “Dessa forma, o comércio não pode significar outra coisa senão saquear as posses das outras pessoas.” (LUTERO, 2001, p. 10) Por isso preconiza leis que limitam o poder dos comerciantes para que o próximo seja protegido, e sugere:

[…] a forma mais adequada e segura seria que a autoridade do governo nomeasse pessoas sensatas honestas para avaliarem custos de todos os tipos de mercadoria. A partir daí, deveriam fixar o preço máximo que as mercadorias deveriam custar, para que o comerciante possa subsistir e ter seu justo sustento. Assim como em diversos lugares são tabelados os preços do vinho, do peixe, do pão e similares.

LUTERO, 2001, p. 13

Estas leis precisam ser rigorosas, pois a prática do puro amor cristão é atropelada pelo interesse ganancioso daqueles que colocam o seu coração no dinheiro, nos bens e nas riquezas.

Já ensinei, muitas vezes, que não se deve nem se pode governar o mundo segundo o Evangelho e o amor cristão. Deve-se governá-lo segundo leis rigorosas, com espada e força, porque o mundo é mau e não aceita o Evangelho nem o amor. Antes age e vive segundo seu atrevimento, se não é obrigado à força. Caso contrário, ao praticar o puro amor, todas as pessoas iriam querer comer, beber e viver bem das posses das outras, e ninguém trabalharia. Cada uma iria tirar o que é da outra. Isso criaria uma situação em que a convivência se tornaria impossível.

LUTERO, 2001, p. 33)

Por isso, o exercício e a execução das leis requerem um governo temporal. Fundamentado nos escritos dos apóstolos Paulo (carta aos Romanos 13. 1,2) e Pedro (1 Pedro 2.13s), Lutero defende a necessidade de um governo temporal que faça valer a lei, e justifica este Estado como instituição divina.

Todos os não cristãos pertencem ao reino do mundo ou da lei. São poucos os crentes, e apenas a minoria age como cristãos, não resistindo ao mal ou até não praticando o mal. Por isso Deus criou para esses, ao lado do regime cristão, outro regime e os submeteu à espada. Isso para que, ainda que o queiram, não possam fazer maldade e, caso fizerem, não o possam fazer sem medo e em paz e felicidade. Assim como se domina um animal feroz com correntes e cordas, para que não possa morder e despedaçar, como é próprio de sua raça, mesmo que quisesse. Um animal manso e dócil não precisa disso. Não faz mal, mesmo estando sem correntes e cordas.

LUTERO, 2000b, p. 18

Mesmo sabendo das limitações de suas sugestões no sentido de não serem ouvidas, Lutero desafia a autoridade secular a exercer seu governo segundo os princípios cristãos.

Aquele que quiser ser um príncipe cristão tem que desistir realmente da idéia de querer governar e agir com violência. Pois toda vida que se vive e busca proveito próprio é maldita e condenada. Todas as obras não inspiradas pelo amor são malditas. Elas se inspiram no amor quando não se deixam guiar pelo prazer, vantagem, honra, comodidade e salvação da própria pessoa, mas quando procuram a vantagem, a honra e a salvação de outros de todo o coração.

LUTERO, 2000b, p. 57

Entretanto, Lutero não enxergava uma perspectiva democrática na política em nível de Estados ou de Nação. Em seu tempo não se vislumbrava um poder nacional oriundo de uma vontade popular mediante um sufrágio universal. Mas a sua proposta de uma reforma social que atendesse às necessidades fundamentais, como comida, trabalho e educação, lhe permitiu ir além do seu tempo. O resgate da comunidade na defesa e cuidado dos pobres e crianças levou-o a pensar e defender propostas de gestão econômicas e políticas participativas a partir da vivência e compromissos comunitários. Para Pauly, “Lutero seria, ao mesmo tempo, na linguagem da ciência política, um democrata moderno no governo municipal e um déspota esclarecido no governo estadual e nacional. Sua eclesiologia e sua política democráticas limitam-se ao município.” (PAULY, 2002, p. 149)

Assim, Lutero desenvolveu o embrião para uma compreensão sobre a importância e as possibilidades do poder local. Um poder que está próximo da população. Esta perspectiva se construiu, sobretudo, na luta contra a pobreza e a mendicância, por meio de uma assistência social organizada de forma democrática. “Lutero é um dos principais líderes religiosos a fundamentar uma ética democrática.” (PAULY, 2002, p. 149)

A organização da assistência social decorre da reforma do culto que Lutero promoveu. Sua teologia reivindica a superação do dualismo que permitia uma separação entre a vida espiritual e as ações concretas do cotidiano. Sua hermenêutica bíblica permitiu-lhe restaurar o sentido do culto cristão. Este deve traduzir-se para dentro da vida, do cotidiano das pessoas. Por isso, o sacramento da Ceia do Senhor deve provocar uma nova ética social, pois, como sinal de uma comunhão radical em Cristo, compromete o ser humano a viver concretamente esta comunhão com a comunidade e com a cidade. A comunidade e a cidade tornam-se um só corpo e seus cidadãos pertencem uns aos outros.

A analogia feita por Lutero entre a relação mútua de sacramento e ética social e os benefícios e responsabilidades da cidadania é notável no que diz respeito à relação entre a Reforma e as cidades. O
uso correto do sacramento edifica a comunidade. Desta forma, a pessoa em necessidade recebe a recomendação de que dirija-se alegremente ao Sacramento do Altar e deponha seu pesar na comunidade, busque ajuda junto a todo o corpo espiritual, assim como um cidadão pediria auxílio às autoridades e concidadãos.

LINDBERG, 2011, p. 142

Essa ética social constitui-se em uma experiência políticoeconônica democrática e cidadã introduzida inicialmente em duas cidades. A primeira foi em Wittenberg. Em janeiro de 1522 esta cidade aprovou sua Constituição através de um conselho da cidade. Nela Lutero e Karlstadt fizeram contribuições substanciais. Conforme Lindberg, dos 17 artigos, l4 legislavam em favor de auxiliar os pobres e enfrentar a pobreza. Foi instituída uma caixa comum para servir de custeio aos necessitados, e possibilitar captação de recursos para emprestar a juros baixos para trabalhadores e pequenos artesões com o objetivo de melhorar sua situação de vida e possibilitar melhorias no trabalho e na produção. Mas, para o nosso interesse, a principal contribuição da caixa municipal era o financiamento da educação para as crianças pobres. A captação dos recursos se dava por meio de orçamentos das instituições religiosas e de propriedades pertencentes a igrejas, que foram desfeitas pelo conflito. Quando os recursos não supriam as necessidades, um artigo constitucional previa a arrecadação de impostos entre as diferentes camadas da população.

Muitas das caixas – e ordens esmoleiras, foram publicadas por meio de impressos. Especialmente visíveis e exemplares foram as que Karlstadt influenciou através da Ordem louvável do principado de Wittenberg, de l522, que foi precedida desde 1521 por variadas ordens medicantes pela inspiração de Lutero, assim como a do prefácio dele que guarnece a caixa comum de Leisnig, de 1523.

LAUBE, 1983, p. 148-149

A Constituição de Leisnig, elaborada pelo Conselho da cidade, recebeu importante contribuição de Lutero. Nela são definidos os estatutos para a administração da caixa comum, sobre as orientações de como lidar com as propriedades comuns da igreja, sobre o direito e a autoridade das assembléias comunitárias e sobre a nova ordem do culto nas comunidades. Os objetivos da caixa comum não se restringiram a um assistencialismo para com a população pobre, conforme já apresentado acima. Tratava-se de um programa mais global para superar a pobreza.

Em termos de assistência direta aos pobres, a constituição regulamentou desembolsos em empréstimos e doações para recém chegados a fim de auxiliá-los a se estabelecer na cidade: para os pobres com casa que, depauperados por circunstâncias fora de seu controle, moravam em sua própria residência e não pediam esmolas em público, a fim de ajudá-los a se firmar num negócio ou numa ocupação; e para os órfãos, dependentes menores, inválidos e idosos, a fim de prover seu sustento diário.

LINDBERG, 2001, p. 148

Não há dúvida que por detrás dessa organização estava uma dimensão política de cidadania democrática bem significativa e, de certa forma, deslocada no seu tempo. Tal democracia participativa estava adiantada em vários séculos. Em meio ao regime feudal, as cidades inspiradas nestes princípios buscavam, por meio da participação popular, a sua organização política, econômica e social. No Acordo fraternal da caixa comunitária de toda a comunidade de Leisnig (1523), no título que trata sobre bens, reservas e receitas da caixa comunitária, transparece claramente que as decisões acerca do assunto foram construídas coletivamente através de assembléias comunitárias. Vale a pena reproduzir o referido acordo.

A fim de que nossa fé cristã, na qual todo temporal e eterno foi obtido e a nós comunicado por pura graça e misericórdia pelo Deus eterno através de nosso senhor e redentor Cristo, venha a produzir e seja levada a produzir o fruto verdadeiro do amor fraternal e este amor se concretize na verdade e nas obras de bondade e humildade, nós, a assembléia geral antes mencionada, ordenamos, instalamos e estabelecemos unanimemente para nós e nossos descendentes uma caixa comum. Por este documento e por força deste nosso acordo fraternal, ordenamos, instalamos e estabelecemos a mesma para o propósito e da maneira e forma a seguir arrolados. Atribuições e recursos da caixa comum: Portanto, nós, a assembléia paroquial e nossos descendentes, doravante queremos alimentar, prover e manter com recursos de nossa caixa comum e através de nossos dez administradores eleitos, na medida de nossos bens e com a graça de Deus, os seguintes títulos de despesas, conforme o respectivo caso, ou seja: despesas com o ministério pastoral; despesas com a sacristia; despesas com a escola; despesas com os inválidos e idosos pobres; despesas com o cuidado das crianças órfãs e pobres; despesas com o cuidado de pessoas sem casa; despesas com o cuidado de migrantes; despesas com manutenção e construção de prédios; despesas com a compra de cereais para estoque [regulador] comum; acrescentar à caixa comum
qualquer receita [auferida].

ALTMANN, 1994, p. 213-214

A pesquisa de Carter Lindberg (2001, p. 146-147) atesta a organização democrática e participativa da constituição da caixa comunitária. A administração se efetivava através de representantes eleitos pela comunidade. Tratava-se de dez administradores: dois membros indicados pela nobreza, dois membros do Conselho da cidade, três cidadãos comuns da cidade e três representantes dos camponeses. Toda a movimentação financeira devia ser registrada em livros guardados em caixa-forte da igreja, trancados com diferentes chaves segundo os grupos envolvidos no processo. Relatórios trienais deviam ser apresentados à comunidade pelos seus diretores.

A teologia de Lutero exigiu uma população educada. Por isso, a educação representou um item importante no orçamento das cidades. Objetiva-se a construção e manutenção de escolas e o pagamento dos professores, e do poder público era exigido a construção e manutenção de bibliotecas.

Lutero, 250 anos antes, defende a educação básica pública, municipal, financiada com o mesmo valor destinado aos militares e à infra-estrutura comercial! Ou seja, ele imaginava que generais e comerciantes eram tão necessários quanto professores. A cidadezinha de Leisnig tornou-se a primeira comunidade luterana organizada. Seu estatuto foi preservado. Ele dedica um capítulo inteiro à sua escola pública não-estatal! Isto em 1523! A escola da igreja de Leisnig atendia 45 alunos em 1529, numa população de 3 mil habitantes. A escola contava com um professor para os meninos e uma ‘senhora honesta, já de certa idade e irrepreensível’, para as meninas menores de 12 anos. Eram eleitos e avaliados pela assembléia paroquial anual, que também definia seus salários.

PAULY, 2002, p. 155

Considerações finais
Concluímos que os escritos de Martim Lutero sobre educação, ética e cidadania são uma importante contribuição para ressignificar a educação na sua inseparabilidade com a ética e a cidadania enquanto lugares privilegiados da educação em nossos dias. Eles asseveram a existência de uma cultura histórica protestante que contribui para um conceito emancipatório e libertador de educação, cuja prática demandou um intercruzamento com a dimensão da ética e da cidadania.

Lutero via a educação como um instrumento fundamental para o exercício da vida cristã. Assim, a Reforma tornou-se a primeira escola do povo alemão, imp ulsionando a educação pública. Lutero desafiou a sociedade de então para a responsabilidade com a educação e a formação da juventude. Não se trata de uma educação apenas direcionada para a formação de quadros para a Igreja, mas de uma educação que objetivava a formação integral do ser humano. Educação integral, de perspectiva construtivista e lúdica que preparasse a pessoa para o conhecimento de Deus, o conhecimento do mundo no sentido de viver este mundo segundo os critérios cristãos, de justiça, honestidade e responsabilidade pública. Uma educação que premonizou a concepção freireana que vê na educação um
processo de humanização do ser humano; uma forma de tornar o ser humano mais ser humano. Segundo Lutero, esta educação deveria ser assumida pelo Estado, em parceria com a família e a comunidade confessional. Esta defesa permitiu afirmar que, no contexto luterano, as proposições de Lutero deram início à escola público sustentada pelo Estado e pela comunidade, por quem poderia contribuir financeiramente com ela.

Concluímos que a grande tarefa dessa escola era a formação de pessoas éticas e cidadãs. Pessoas capazes de organizar o convívio social, político e econômico segundo critérios bíblicos de justiça, honestidade e retidão, para que cada comunidade e cidade se organizem de tal forma que todos tenham acesso à educação, a um trabalho que permita o acesso ao pão de cada dia. E que aqueles que não puderem realizá-lo por alguma deficiência sejam carregados pela comunidade assistencial. Tudo isso, a
partir da caixa comunitária, administrada democraticamente por um conselho representativo de todos os segmentos sociais, conforme a Constituição de Leisnig.

Em síntese, a historiografia educacional (que no nosso entender ainda não reconheceu devidamente este pensador), tem em Lutero uma referência importante para a concepção humanista de educação e sua inseparabilidade com a ética e a cidadania. Com suas críticas e propostas educacionais Martrim Lutero vislumbrou e projetou a ética e a cidadania como lugares privilegiados da educação e fez a defesa da necessidade de aprofundar a democratização da educação em todos os níveis.

Referências
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Notas

1 As citações e referências bibliográficas destes escritos são extraídas das versões atualizadas dos originais publicadas na Coleção Lutero para Hoje, editadas em co-edição pelas Editoras Sinodal/Concórdia. Optamos por estas versões por se tratarem de trabalhos considerados fidedignos, realizados por um grupo de estudiosos renomados sobre o autor e porque a versão atualizada torna a leitura mais fácil e agradável.

2 Lutero trabalha suas posições éticas no livro Das Boas Obras, traduzido na versão atualizado como Ética cristã. Martim MUTERO. Ética cristã.

3 A visão dualista decorrente de uma interpretação errônea sobre a Doutrina dos Dois Reinos (Espiritual e Temporal) em Lutero foi amplamente estudada. Para Duchorow trata-se de um falso dualismo: “Devido ao desenvolvimento da sociedade burguesa moderna e dos vários sistemas sociais burocráticos que a acompanham, o conceito neoluterano da doutrina dos dois reinos e do duplo governo de Deus (bem como a doutrina da justificação, que aqui não é examinada em detalhe, mas que deveria ser investigada paralelamente) aceitou, pelo menos inconsciente, pressão no sentido de apoiar um falso dualismo entre o indivíduo privado e as assim chamadas “leis autônomas” medidas institucionalmente, que, segundo se afirma, governam as esferas corporativas ‘externas’ da vida. Isto põe em perigo não apenas a participação teologicamente adequada dos cristãos e das Igrejas na vida social e pública, mas também o indivíduo que, na autocompreensão dos conceitos individualizados de justificação e do governo espiritual de Deus, supostamente encontra-se no centro.” (Ulrich DUCHROW. Os dois reinos: uso e abuso de um conceito teológico luterano, p. 57). Também Altmann, sob a enfoque latino-americano, vê na teologia de Lutero sobre os dois reinos antes uma relação dialética do que dualista. “[…] a opção fundamental não se coloca entre Igreja e Estado, mas entre justiça e injustiça, verdade e mentira, liberdade e opressão, vida e morte. Essa opção, o evangelho impõe tanto à Igreja quanto ao Estado. Logo, a rigor não se trata de defender o Estado da intromissão indevida da Igreja, nem tampouco a Igreja do controle arbitrário do Estado. Trata-se sempre de lutar concretamente em favor da justiça e do direito, da democracia e da participação popular, tanto na ordem do Estado quanto na das próprias igrejas.” (Walter ALTMANN. Lutero e a libertação, p. 176).


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