A FILOSOFIA POLÍTICA DE MARTINHO LUTERO


Categoria: Martinho Lutero, Filosofia
Imagem: Leipziger Disputation zwischen Luther und Eck, Gemälde von Julius Hübner (1806-1882) (zerstört) - Simul Justus et Peccator Blogspot
Publicado: 21 de Julho de 2020, Terça Feira, 15h28

PAULO HENRIQUE VIEIRA
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Estadual de Maringá – PR

– RESUMO
A importância de Martinho Lutero como pensador reside no fato de ter contribuído decisivamente para o desencadeamento da Reforma que quebrou a unidade do cristianismo ocidental. Ao romper a unidade da Igreja Cristã Ocidental, Lutero e seus seguidores buscaram também novos fundamentos para a concepção de Estado, governo e poder político, tendo efeitos até nossos dias. Nesse trabalho devem ser investigadas suas posições sobre os fundamentos e os limites do domínio da autoridade secular, o direito à não-resistência e as relações com os homens fora da Cristandade, assuntos extremamente importantes e vinculados à revolta dos camponeses alemães de 1525. Evidentemente que as questões políticas encontradas em Lutero são conseqüências de sua teologia, que era o que norteava seu pensamento. Lutero posicionou-se diretamente sobre a Guerra dos Camponeses em dois textos principais: Exortação à Paz, Resposta aos Doze Artigos dos Camponeses da Suábia e o Adendo: Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses, a partir dos quais esse trabalho foi elaborado.

– AS IDEIAS POLÍTICAS DE LUTERO E A GUERRA DOS CAMPONESES

1 INTRODUÇÃO
O início do século XVI, período que abrange nosso estudo, foi um momento de grandes transformações na história da humanidade, e que desencadeou novas perspectivas culturais, científicas, econômicas, políticas, geográficas e religiosas. Dentro da historiografia que trata da passagem da Idade Média para a Idade Moderna, é possível encontrar algumas datas convencionalmente aceitas pelos historiadores para demarcar o início desses novos tempos, quais sejam: 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guerra dos Cem Anos), 1492 (descoberta da América) e 1517, início da Reforma Protestante[2], esta última iniciada por Lutero quando questionou o comércio de indulgências, indo de encontro à própria teologia católica, ousadia que lhe rendeu muitos problemas e, é claro, muita notoriedade.

Particularmente, nosso estudo se limita, quanto ao tempo, aos anos de 1524/1525 e, quanto ao espaço, à região que hoje corresponde à Alemanha, onde, sob a influência de Tomás Müntzer, milhares de camponeses se rebelaram em luta armada contra príncipes e senhores feudais com a finalidade de obterem maior liberdade e direitos não somente sobre a terra, mas igualmente sobre as florestas, a caça e também sobre a escolha e a manutenção de seus párocos. Essas reivindicações foram reunidas num escrito que ficou conhecido como Zwölf Artickel (Os Doze Artigos dos Camponeses da Suábia)[3], publicado em 1525. Lutero posicionou-se sobre a Guerra dos Camponeses, atendendo ao pedido e às expectativas dos próprios camponeses, que entre outros nomes o citaram para arbitrar sobre a questão. “Quanto a mim, que também sou considerado como um dos que nestes tempos interpreta a palavra de Deus aqui na terra, mormente porque no segundo documento me citam e invocam nominalmente[4], tenho tanto mais ânimo e disposição de dar a público minha instrução.[5]

Nosso objetivo é, a partir dos pronunciamentos que Lutero fez sobre dois temas diretamente ligados à guerra camponesa, analisar as idéias políticas que aparecem nesses textos, ou seja, a partir dos escritos que elaborou sobre os teólogos revolucionários, sobretudo na figura de Tomás Müntzer[6], e também sobre o que trata dos Doze Artigos[7]. Homem determinado e inteligente, Lutero personificava as transformações desse período de grandes inovações, que atingiram os mais diversos ramos do conhecimento humano, no seu caso, a religião e a teologia[8].

2 A FILOSOFIA POLÍTICA DE MARTINHO LUTERO

2.1 Os Primórdios da Reforma Luterana
Os vícios e abusos que manchavam a moral da Igreja desde o fim do século XV, e que não podem ser apresentados pormenorizadamente neste lugar, não eram novos; antes da Reforma muitos outros já haviam questionado os dogmas e práticas da Igreja. Parece, todavia, que às vésperas da Reforma esses abusos tornaram-se escandalosos e, por alguma razão, constituíram-se obstáculos ao avanço de novas forças sociais[9]. A formação das nacionalidades parece comprovar essa idéia. A exploração a que os feudos alemães eram submetidos pelo envio dos anates[10] para Roma favorecia os interesses dos estrangeiros italianos em detrimento dos alemães, interesses estes que eram defendidos por muitos representantes dos príncipes e também da Igreja Católica na Alemanha, mas especialmente por Lutero. Por isso, ele tratou desse tema também nos seus escritos programáticos de 1520. No seu escrito À Nobreza Cristã da Nação Alemã, Lutero advertiu: “Agora que a Itália está totalmente exaurida, eles vêm para as terras alemãs, começando com muita cautela. Prestemos atenção, porém: em pouco tempo a Alemanha ficará igual à Itália. Já temos alguns cardeais. Os tontos dos alemães não devem entender o que os romanos pretendem com isso, até que não tenham mais um único bispado, mosteiro, paróquia, feudo, vintém ou centavo.[11] Aqui o interesse religioso de Lutero se funde aos interesses econômicos e políticos de alemães, pobres e ricos contra o fiscalismo romano.

Com a publicação de suas teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, Lutero não pretendeu desencadear uma divisão da Igreja ou mesmo um rompimento, mas simplesmente discutir teologicamente o assunto. As teses não foram as primeiras a propor o debate público, muito embora tenham sido consideradas o marco inicial da Reforma[12].

Lutero inquietava-se com o problema da salvação do homem e já não se satisfazia com a idéia de que, mesmo após a Queda, ele poderia alcançar a salvação por suas próprias forças. Desesperado, queria assegurar-se de que Deus aceitaria sua alma, mas só via em si mesmo o pecado, e em Deus, a justiça infinita que tornava infrutíferos todos os esforços de arrependimento. Compreendeu que a salvação ocorria “somente pela fé em Jesus Cristo, sem qualquer obra e mérito nosso, concedido e dado de presente por pura graça de Deus.[13] Para ele, era possível buscar a salvação direta e individualmente, ou seja, sem a participação de intermediários; essa graça só podia ser alcançada por meio da fé em Deus e em seus ensinamentos transmitidos por Cristo. No momento em que tornou públicas essas idéias, Lutero acabou enfraquecendo as estruturas hierárquicas da Igreja, concebidas até então como mediadoras entre Deus e o homem. A inutilidade dessa hierarquia foi reforçada também por sua doutrina do Sacerdócio Universal; por meio dessa doutrina Lutero pregava a possibilidade de todo cristão exercer funções de pregação e, assim, substituir os clérigos. “É por isso que, em caso de necessidade, cada um pode batizar e absolver. O que não seria possível se não fossemos todos sacerdotes.[14]

Para um homem tão intensamente preocupado com a salvação, o esclarecimento sobre a venda de indulgências tornava-se extremamente importante. Prometendo absolvição ao pecador em troca de dinheiro, a Igreja iludia seus fiéis fazendo-os acreditar que por esse meio pudessem livrar-se da contrição e da penitência.

Assim, Lutero atacou as indulgências, não como mais um abuso, mas como qualquer coisa de central na verdade da religião. Mesmo assim, as suas teses poderiam não ter conduzido a mais do que uma obscura disputa acadêmica. Questionavam, é certo, os poderes papais, mas duma maneira moderada e como ponto de partida para o debate. Lutero publicara-as em latim, mas foram imediatamente traduzidas para o alemão e difundidas na escrita impressa. O interesse que suscitaram foi geral, súbito e inesperado.[15]

Não pretendia uma reforma social ou de contestação dos privilégios de que gozavam os mais poderosos, como fizeram anteriormente John Wyclif (1330-1384)[16] na Inglaterra, Jan Huss (1369-1415)[17] na República Tcheca e Girolamo Savonarola (1462-1498)[18] na Itália. As críticas de Lutero referentes à hierarquia e às autoridades limitavam-se exclusivamente à Igreja. Com a publicação, suas doutrinas difundiram-se rapidamente atingindo primeiramente as cidades e, em seguida, também o campo.

2.2 Os Camponeses e a Reforma Protestante
No campo, a situação de penúria que esmagava os camponeses vinha piorando a cada ano devido a vários fatores, dentre os quais podemos citar o elevado crescimento populacional; a migração intensiva; a reativação da instituição da servidão; a limitação ao exercício de privilégios garantidos às gerações anteriores e a grande elevação da carga tributária. Fatores esses que dificultavam extremamente as atividades agrícolas e o atendimento às necessidades básicas desses agricultores.[19] A realidade dos camponeses alemães nesse período era insustentável; de um lado a exploração, a opressão e a força dos príncipes, e do outro o medo e a intimidação da Igreja. Impostos, taxas, tudo era feito para que pagassem a conta do luxo e dos excessos da nobreza e do clero. Deviam trabalhar a maior parte do tempo nas terras do senhor e com o que ganhavam em suas tarefas livres tinham que pagar o dízimo, os censos, peitas, o viático, impostos regionais e imperiais. Não podiam casar-se, nem morrer, sem que seu senhor lhes cobrasse.

A Reforma protestante foi uma “revolta” religiosa que questionou a hegemonia teológica da Igreja centrada em Roma. Lutero não se submetia, nem aceitava mais passivamente aquilo que considerava um engano teológico, ou uma falsa doutrina, mesmo que isso fosse defendido por seus superiores, incluindo o líder maior da Igreja, o papa. Com sua rebeldia, Lutero engendrou na mente popular a possibilidade de mudar e melhorar a sociedade, assim como ele o fez no cristianismo, embora esses resultados se dessem além e à revelia das intenções do reformador, que queria unicamente uma reforma da Igreja, sem maiores conseqüências políticas e sociais.

O enfraquecimento da Igreja depois dos ataques dirigidos à sua hierarquia sacerdotal e suas posses imobiliárias (catedrais, terras, mosteiros) foi importante para encorajar os trabalhadores do campo a se rebelar contra seus superiores, buscando eliminar ou pelo menos amenizar suas vicissitudes. A doutrina do Sacerdócio Universal dava subsídios para que se eliminassem tanto a Igreja (materialmente construída) quanto sua hierarquia (financeiramente conquistada), em favor de uma nova orientação que ligava o homem diretamente a Deus, tendo como único intermediário a palavra divina. Como muitos príncipes detinham altos cargos eclesiásticos e muitos eclesiásticos, enorme riqueza principesca, os camponeses foram levados a acreditar que o questionamento à hierarquia religiosa pudesse se estender também às autoridades seculares, uma conclusão errônea e severamente criticada por Lutero.

A Revolta Camponesa foi uma luta contra os abusos econômicos e os privilégios sociais de que gozava uma minoria. Foi constituída em sua grande maioria por agricultores, embora tivesse também a participação de artistas, religiosos e artesãos, atraídos pelo discurso mais radical de Tomás Müntzer e de outros teólogos revolucionários. Os camponeses fundiram em suas reivindicações interesses espirituais e materiais recorrendo ao direito divino para justificar suas propostas, assim como Lutero fez diante da assembléia em Worms. Não houve nessa revolta uma estrutura central para toda a Alemanha, mas havia alguns movimentos organizados segundo certas regiões. Cada grupo tinha as suas próprias reivindicações, adequadas à sua realidade local. Os Doze Artigos do Campesinato da Suábia foi um desses escritos; eles se tornaram as reivindicações mais conhecidas, mais importantes e mais efetivas, reunindo as exigências dos diferentes grupos de camponeses.

Nesses artigos solicitavam maior poder e autoridade para que cada comunidade pudesse eleger seu pastor e, da mesma forma, dispensá-lo; liberdade segundo as Sagradas Escrituras, pois, diziam, se Cristo salvou com seu sangue tanto nobres quanto humildes, assim eles deviam ser igualmente livres como os nobres o eram; direito à caça e à pesca; devolução das florestas que estivessem nas mãos de leigos ou religiosos que não as adquiriram legalmente; um exame mais cuidadoso da sobrecarga de trabalho que pesava sobre o camponês, que eles tomassem por base os serviços prestados pelas gerações passadas; cumprimento por parte dos senhores daquilo que havia sido estabelecido inicialmente entre ambas as partes, que, se precisassem de serviços suplementares, então remunerassem devidamente os trabalhadores; fixação de uma taxa justa de arrendamento; devolução para a aldeia de campos e pastagens adquiridos fraudulentamente; abolição do chamado “caso de morte”, em que se apoderavam descaradamente dos bens pertencentes a viúvas e órfãos. Ao final dessas reivindicações concluíram que, a não ser que se provassem serem elas contrárias à palavra de Deus, não abririam mão delas. Esses artigos soaram como um grande alerta e uma forte ameaçaà ordem social estabelecida.[20]

2.3 Martinho Lutero e o Espírito Revoltoso
Enquanto a Igreja tinha razões para estar horrorizada com o radicalismo da ruptura de Lutero ou de Zuínglio com a tradição e a autoridade, em breve se tornou, porém, evidente que estes reformadores eram, em muitos aspectos, bastante conservadores.[21]

Antes dos confrontos de 1525 Lutero já denunciava uma facção de pregadores mais radicais que questionavam a fundamentação teológica e as conseqüências práticas dos privilégios senhoriais. Sobre esses pregadores, Lutero redigiu uma carta aos príncipes da Saxônia[22], Frederico III (1463-1525), o Sábio, Príncipe Eleitor da Saxônia, governante territorial de Lutero, e João, o Constante (1468-1532), irmão de Frederico, alertando-os para os perigos desse espírito revoltoso presente em todos aqueles que compartilhavam das idéias revolucionárias de pregadores como Tomás Müntzer, seu maior inimigo.

Tomás Müntzer[23] nasceu provavelmente em Stolberg no ano de 1490; em 1514 foi ordenado sacerdote, tendo concluído seus estudos em Frankfurt no ano de 1516. Müntzer aderiu inicialmente ao luteranismo, mas logo percebeu enormes diferenças entre seu pensamento e o de Lutero. Embora concordassem sobre a inutilidade da hierarquia existente na Igreja, não se afinavam nos principais pontos de suas doutrinas. A verdadeira fé, para Lutero, baseava-se na crença nos ensinamentos de Deus encontrados exclusivamente na Bíblia; para Müntzer, entretanto, ela nascia da experiência interior de Deus no ser humano.

“Onde, porém, a semente cai em solo fértil; isto quer dizer nos corações que estão cheios do temor do senhor, torna-se então o papel e o pergaminho onde Deus escreve, não com tinta, mas com seu dedo vivo; esses corações são a verdadeira Sagrada Escritura que, então, é testemunhada bem pela Bíblia visível.”[24]

Se em Lutero o anticlericalismo criticava uma hierarquia desnecessária para a salvação humana, em Müntzer essa crítica abrangia todos aqueles que se aventuravam a ensinar as Escrituras sem tê-las experimentado intimamente, e isso valia não só para os membros da Igreja, mas também para Lutero. “Existiram muitos patifes, ansiosos por prestígio, que jogaram ao pobre povinho os textos papais da Bíblia, como se costuma jogar pão aos cachorros, sem que viessem acompanhados da experiência interior.”[25] Conseqüentemente nenhum cristão podia ter a certeza de sua salvação porque desconheciam a possibilidade de receber intimamente a palavra viva de Deus e identificar o que é Bíblia e o que é Babel[26], ou seja, o que é verdadeiro ou falso, bom ou ruim. Para Müntzer, a palavra em si não podia ser o único comprovante da fé cristã, sobretudo porque foi monopólio exclusivo dos homens da Igreja por muitos séculos, que, como já foi dito, nem sempre estavam imbuídos dos verdadeiros interesses do cristianismo, o que tornava duvidosa sua autenticidade pela possibilidade real de adulteração ou falsificação. “Não podiam também ter mentido aqueles que os escrevem? Como se pode ter certeza se é verdade o que está escrito?[27]

Desse modo, o que era essencial para Lutero, para Müntzer podia ser perfeitamente dispensável, pois a fé nas Escrituras, como meio de salvação (justificação pela fé) pregado por Lutero, não podia ser comprovada. Primeiro pela incerteza da veracidade dos textos sagrados, e depois pelo simples fato de crer que o homem, segundo Müntzer, não podia ser salvo. “Dever-se-ia jogar fora uma tal justificação, junto com os patifes, e os que tentam escapar dessa maneira deveriam ser lançados às profundezas do inferno, pois essa suposta justificação é mais tola que a própria tolice.[28]

Outra grande diferença entre esses dois teólogos diz respeito ao conceito de autoridade e se originou de suas diferentes concepções de paraíso. Para Lutero, que acreditava num paraíso extra-humano, isto é, num paraíso além da vida física, as condições materiais e sociais pouco importavam, daí porque a submissão pacífica perante as autoridades. Para Müntzer, que pregava a possibilidade de um reino de bem-aventuranças aqui e agora, a autoridade não se vestia desse caráter “sagrado” encontrado em Lutero, sua posição era delineada por uma análise mais prática. Caso essas autoridades não agissem de acordo com o que se esperava de um cristão, a própria comunidade tomaria para si o poder e os arrancaria de seus cargos. “Toda uma comunidade possui o poder da espada bem como também a chave da destituição, e a partir de textos (Dn 7.27, Ap 6.15, Rm 13.1, 1 Sm 8.7) que os príncipes não são senhores, porém servos da espada. Não devem agir como lhe apraz (Dt 17.18s), mas devem agir corretamente.[29] Em Müntzer, o incitamento a ações mais efetivas partia de sua concepção de paraíso, resultado de conquistas e lutas empreendidas pelos fiéis impulsionados por suas transformações internas, a partir dos quais se edificaria o reino de Deus na terra.

Para ele, quando ocorre a conversão interna, provocada por Deus diretamente no indivíduo, tem que ocorrer também a conversão externa. À revolução no indivíduo, que é a mudança provocada por Deus nele, quando fala a ele diretamente pelo Espírito, corresponde a revolução, a mudança na sociedade, na Igreja.[30] Por isso, condenou Lutero quando este saiu em defesa das autoridades que impediam a realização do reino de Deus na terra. “É um arauto, quer merecer gratidão com o derramamento de sangue do povo, e em troca de riqueza temporal, que Deus, entretanto, não ordenou como sua intenção.[31]

As divergências teológicas que se chocavam entre esses dois religiosos tornavam impossíveis quaisquer tentativas de conciliação. Para Müntzer, o doutor mentiroso e vida mansa havia se aliado às autoridades e se acovardado diante das injustiças, não levando às últimas conseqüências sua doutrina reformatória. Para Lutero, esse discípulo do diabo e falso profeta queria apenas promover desordem e tumulto com ações violentas e falsas doutrinas. Por isso, Lutero se dirigiu aos príncipes advertindo-os da ameaça representada por gente como Müntzer, que havia se tornado popular por suas pregações em Allstedt, ganhando a simpatia dos menos favorecidos. O próprio Lutero falou de sua intenção ao redigir esta carta: “Escrevi esta carta a V. A. P. [Vossa Altíssima Potestade] tão somente porque ouvi e também deduzi de sua publicação que esse espírito (Müntzer) não irá contentar-se com palavras, mas pretende usar a força e se opor à autoridade com violência, e organizar para tanto uma verdadeira rebelião.[32] Nesta carta, Lutero se vale da ironia e do desprezo para subestimar a coragem e a inteligência dos adversários. “Ainda que tivesse sabido haver tantos diabos me visando quantas telhas há nos telhados de Worms, assim mesmo eu teria cavalgado para lá, e isso apesar de não ter ouvido vozes celestes nem dos talentos e obras de Deus, nem do espírito de Allstedt,[33] apresentando-se como o verdadeiro representante do cristianismo. “Nós ensinamos e confessamos que o espírito que pregamos e proclamamos traz os frutos a que S. Paulo se refere em Gl 5.22, tais como: amor, alegria, paz, paciência, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio.[34] Aconselhou os príncipes para que não se opusessem ao ministério da palavra. “É a luta espiritual que arranca os corações e as almas do poder do diabo.[35] Entretanto, se além das palavras os camponeses quisessem usar da violência, então os príncipes deveriam impedi-los, pois era para isso que a autoridade lhes havia sido concedida.

Para Müntzer, estava claro que os problemas do campo tinham sua origem na opressão e na ganância dos nobres, que durante séculos exploraram o pobre homem do campo.

Observe, a causa fundamental da usura, da ladroagem e do banditismo são os nossos senhores e príncipes. Eles tomam todas as criaturas como propriedade: os peixes no mar, as aves no céu, as plantas na terra, tudo precisa ser deles (Is 5.8)[36]. A esse respeito fazem proclamar entre os pobres o mandamento de Deus e falam: ‘Deus ordenou: Não furtarás.’ Isso, porém, não se aplica a eles. Obrigam todos os homens, arrancam a pele e rapam o pobre lavrador, o trabalhador manual e tudo o que vive (Mq 3.2s)37, mas se alguém furta a mínima coisa, tem de ser enforcado. Vem então o Doutor Mentiroso e ainda diz: Amém.[38]

Ciente do grave problema que envolvia a questão camponesa, Müntzer propôs ações de represália contra nobres e senhores, reconhecendo que de outro modo nada conseguiriam; para ele, algo precisava ser feito, e sem demora, mesmo que para isso fosse necessário empunhar as armas e declarar a guerra.

2.4 Martinho Lutero e a Guerra dos Camponeses
Em 1524/1525, no entanto, nada havia mudado nas regiões agrárias da Alemanha, e a desilusão dos camponeses frente a uma melhora em suas condições sociais convencia-os cada dia mais de que a solução só seria possível pelo uso da força, como pregava Müntzer, numa sublevação contra a nobreza. Lutero percebeu a gravidade do momento e redigiu o texto Exortação à Paz para, em resposta aos Doze Artigos dos camponeses, posicionar-se em primeiro lugar no que diz respeito aos erros teológicos que inspiravam essas ameaças, e depois também porque “se prontificam a aceitar, de bom grado, melhor informação, caso houver carência e necessidade, e de se deixarem instruir, desde que isso aconteça através de citações bíblicas claras, evidentes e incontestáveis.[39] Era uma tentativa de convencer os camponeses a não levantarem as armas e assim evitar as mortes no campo de batalha e a completa devastação dos territórios alemães, o que seria extremamente danoso para a região, porque “onde esse derramamento de sangue começar, dificilmente haverá um fim, a não ser que antes se tenha destruído tudo.[40] Por essas razões Lutero esperava dar um bom encaminhamento em direção a uma solução pacífica, acreditando-se competente e revestido de autoridade para instruir quando o assunto era ou envolvia os textos sagrados.

Outra preocupação de Lutero foi a de esclarecer que não concordava com as reivindicações dos camponeses e muito menos com a sua forma de ação. Advertiu que se “esse caso resultar em infortúnio ou desastre, isso não seja atribuído e imputado a mim perante Deus e o mundo por ter silenciado,[41] reforçando a idéia de que não tinha envolvimento direto com os camponeses e suas exigências, porque ensinava apenas obediência e respeito para com as autoridades.

Como qualquer um, terão que concordar que ensinei sem o menor alarde e que lutei bravamente contra a idéia da rebelião e que instrui com muito empenho os súditos para obediência e respeito até para com as autoridades tirânicas e loucas. Portanto, essa rebelião não tem sua origem em mim.[42]

Exortação à Paz foi dividida em três partes: a primeira parte foi dirigida aos príncipes e senhores, a segunda ao campesinato e a terceira foi direcionada para ambos, príncipes e camponeses.

Inicialmente, Lutero acusou os príncipes de serem a causa da rebelião: “na administração pública outra coisa não fazem do que maltratar e explorar, para alimentar seu luxo e sua arrogância, até que o pobre homem do povo não queira nem possa mais agüentar.[43] Essa revolta camponesa demonstrou claramente para Lutero o descontentamento e a desaprovação de Deus para com as autoridades, assim, pois, permitindo um levante nessas proporções, que colocava em risco toda a sociedade. Lutero admitiu ainda que muitas das reivindicações camponesas, feitas em forma de artigos, eram justas e legítimas, e não só o primeiro artigo que pede liberdade para ouvir o evangelho e escolher um pastor, mas também os outros “que falam dos gravames físicos, tais como a taxação sobre o espólio e tributos, certamente também são procedentes e justos.[44] Os argumentos que usou para defender aqui a causa camponesa e condenar os príncipes não devem ser vistos, entretanto, de forma conclusiva, ou seja, como se defendesse completamente esse movimento. Uma coisa era admitir a difícil condição desses homens e o mau uso da autoridade pelos senhores; outra coisa bem diferente era usar desses pressupostos para iniciarem uma revolta. Lutero aconselhou que os príncipes diminuíssem os gastos com o luxo, a comilança e os desperdícios, dessa forma teriam o que precisavam sem que o pobre homem fosse esmagado pelo trabalho ou pelos tributos; se não quiserem fazer isso de modo inteligente e amigável, então: “terão que fazê-lo sob a ação da violência e da destruição[45].

A segunda parte, dirigida ao campesinato, é muito mais extensa e também muito mais rigorosa no julgamento feito por Lutero. As advertências e os conselhos eram para que os camponeses evitassem o conflito, pois não lutavam por boa causa. Condenou-os também por usarem indevidamente a Palavra de Deus e o Direito Cristão para legitimar suas ambições, apropriando-se falsamente dos textos sagrados; embora ele tenha utilizado desses recursos diante da assembléia em Worms, não permitiu que os camponeses também o fizessem. Alertou-os para a existência de falsos profetas infiltrados no meio deles, que com suas doutrinas estariam levando os camponeses à perdição de corpo e de alma. Primeiro porque evocavam o nome de Deus em vão e se diziam um grupamento cristão, segundo porque queriam fazer justiça com as próprias mãos, atitude condenável para um cristão, que deve se preocupar com a alma e não com o corpo, com o céu e não com a terra. “O fato de a autoridade ser perversa e injusta não justifica desordem ou tumulto,[46] pois “quem revida está errado[47].

É verdade que as autoridades cometem injustiça, barrando o Evangelho e oprimindo a vocês quanto aos bens temporais. Injustiça maior, porém cometem vocês ao não apenas resistirem à palavra de Deus, mas também a pisoteiam, interferindo no exercício de seu poder e direito, colocando-se, inclusive, acima dele.[48]

Para Lutero, nada justificava desordem, tumulto, revolução ou guerra; a submissão incondicional às autoridades é dever de todos os homens, cristãos ou não.

A autoridade lhes tira injustamente seus bens; isso é um aspecto. Por sua vez, vocês tiram dela o poder, no que consiste tudo o que possui, corpo e vida. Por isso vocês são assaltantes muito piores do que eles, e pretendem coisa pior do que as autoridades fizeram.[49]

O peso das obrigações cristãs era muito mais insuportável e pesado para os camponeses do que para seus senhores. Lutero exigia que a conduta evangélica estivesse acima de qualquer preocupação terrena. Já para os príncipes, sua função política era mais importante e de certa forma pairava acima das obrigações morais, daí porque os trechos bíblicos aplicados aos camponeses não foram os mesmos usados para as autoridades.

Lutero percebeu que o radicalismo camponês podia prejudicar seu programa de reforma; reconhecia os camponeses como seguidores do diabo e por isso tinha-os como seus inimigos, porque, sendo ele um dos que nestes tempos interpretava a Palavra de Deus aqui na terra, e como a idéia de rebelião era diametralmente oposta à sua, concluiu que só podiam estar sob o comando do diabo.

Pois estou vendo perfeitamente que o diabo, que até agora não conseguiu eliminar-me através do papa, agora quer destruir e devorar-me através dos profetas sanguinários e assassinos e dos espíritos rebeldes que há entre vocês.[50]

Na terceira parte, que dirigiu tanto a príncipes quanto a camponeses, Lutero sentencia que “Deus é contra ambos, tiranos e rebeldes, por isso os joga uns contra os outros para que ambos pereçam miseravelmente e se cumpra nos descrentes sua ira e seu juízo.[51] Aos príncipes e senhores pediu para que cedessem em sua tirania e opressão, e aos rebeldes para que eliminassem alguns dos seus artigos que iam longe e alto demais. Deus condenava os príncipes porque exploravam impiedosamente os camponeses, mas era também contra os camponeses por não suportarem resignadamente seu sofrimento e sua condição de subalternos.

Suas advertências, entretanto, foram insuficientes para esfriar os ânimos dos camponeses, que iniciaram os combates antes mesmo que Lutero pudesse vir a público manifestar seu julgamento. Irritado, uma semana após ter escrito A Exortação à Paz e percebendo que em alguns locais os confrontos já haviam iniciado, começou a escrever um adendo intitulado Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses, que, ao contrário do primeiro, sugere ações mais enérgicas e de represália à violência praticada pelos revoltosos. Era uma exortação à ação de caráter salvador empreendida agora não só pelas autoridades competentes, mas por qualquer um que pudesse impedir os camponeses, contradizendo suas próprias palavras[52], quando aconselha: “Pois sobre qualquer elemento que subverte a ordem pública qualquer pessoa é tanto supremo juiz e carrasco; é como se houvesse um princípio de incêndio: quem primeiro conseguir apagá-lo é o melhor.[53]

Destacam-se do posicionamento de Lutero duas questões de ordem política que são importantes e significativas dentro de sua filosofia política: a da autoridade secular, extraída,
sobretudo, do capítulo 13 da Carta de São Paulo aos Romanos, e a do direito à não-resistência, baseado nas idéias de resignação à vontade divina com promessas de um paraíso extrafísico.

2.5 Autoridade Secular
Cada qual seja submisso às autoridades constituídas. Porque não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus, e os que a ela se opõem atraem sobre si a condenação (Rm 131-2.). Servos, sede obedientes aos senhores com todo o respeito, não só aos bons e moderados, mas também aos de caráter difícil (1 Pe 2.18). Quem lança mão da espada, à espada perecerá (Mt 26.52).

A função da autoridade secular, na perspectiva de Lutero, seria cuidar da manutenção da ordem pública, conforme ensinam os trechos acima; por isso lembrava às autoridades do seu poder para preservar a paz e castigar os perturbadores, mesmo que para isso fosse necessário o uso da força, pois somente a ela era permitido usar da espada, segundo o texto sagrado; “aqui precisamos entender que não basta que alguém nos faça injustiça, enquanto defendemos uma boa causa e o direito está do nosso lado. É preciso também ter o direito e o poder instituído por Deus para usar a espada e castigar a injustiça.[54] Lutero utilizou repetidas vezes esses capítulos para embasar nas Escrituras a defesa das autoridades. Ele acreditava que a necessidade divina legitimava o poder e as ações que correspondiam às expectativas de ordem e paz, de um mundo formado, sobretudo, por não-cristãos. Porque o verdadeiro cristão era uma ave rara[55] sobre a terra, ou seja, um mundo constituído em sua maior parte de pessoas desregradas, injustas e insubmissas e que, se deixadas inteiramente livres ou sem qualquer controle, destruiriam a paz e a ordem social. Foi a partir dessa premissa que Lutero saiu em defesa das autoridades; mesmo que elas não cumprissem verdadeiramente o seu papel, como ele mesmo admitiu, era um mal menor diante da possibilidade do caos e da completa desordem. E mesmo que o próprio Deus quisesse castigá-los, porque: “Não são os camponeses, senhores, que se levantam contra vocês, é Deus mesmo, para vingar sua insânia“,[56] não teria como agir, pois seu agir no mundo dependia desses homens, o que os colocava, segundo essa opinião, acima do bem e do mal. A substituição desses tiranos não podia ser justificada por qualquer argumentação camponesa ou por qualquer vontade humana, incapaz de mudar ou anular os desígnios de Deus, a ninguém cabia o questionamento desses privilégios, pois seu poder derivava de uma necessidade divina, chegando Lutero mesmo a admitir que “o reino secular não pode subsistir onde não houver desigualdade das pessoas, de sorte que alguns são livres, outros estão presos, uns são senhores, outros, subalternos, etc.[57] Toda a teoria política de Lutero desdobrou-se desse princípio de desigualdade, como sendo algo natural, e desse conceito de autoridade. Como conseqüência, piores do que injustiças e arbitrariedades praticadas pelas autoridades eram a revolta e o questionamento a esse poder, sem o qual apenas o mal e a destruição governariam. Embora impondo alguns limites às autoridades seculares, que, segundo ele, eram incompetentes para arbitrar sobre as questões espirituais nos assuntos de ordem física, sua função era, através da espada, solucioná-los, inclusive pelo uso da força, se necessário, para a permanência da justiça e da ordem. Foi o que aconselhou aos príncipes quanto às hordas salteadoras e assassinas dos camponeses. A conseqüência direta dessas idéias é o conceito de não-resistência.

2.6 Direito de Não-Resistência
Eu, porém, vos digo: Não resistais ao mau. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra (Mt 5.39). Eu, porém, vos digo: Amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem (Mt 5.44). Não vos vingueis uns aos outros, caríssimos, mas deixai agir a ira de Deus, porque está escrito: A mim a vingança; a mim exercer a justiça, diz o Senhor (Rm 12.19).

A pregação dirigida aos camponeses estava repleta de passagens que sugeriam resignação, necessidade de sofrimento e desprendimento dos bens terrenos, deveres exclusivos para homens sem posses e camponeses pobres, uma vez que não se estendiam aos príncipes e senhores. Para Lutero, ao povo restavam apenas a resignação e a obediência a essas autoridades. Escrevia ele aos cristãos (camponeses): “Não são cristãos aqueles que, além da palavra, querem usar a violência e que não estão dispostos a sofrer tudo, ainda que se digam possuídos de dez Espíritos Santos.[58] O problema é que essa mesma violência proibida para os cristãos podia ser usada em outra ocasião pelas autoridades, não quando lutavam, como os camponeses, por melhores condições de vida e menos exploração, mas quando corriam perigo em seus privilégios ou estava em discussão sua autoridade. O único direito do cristão (leia-se camponeses) seria o de:

Não resistir à injustiça, nem lançar mão da espada, não se defender, não se vingar, mas entregar vida e bens, para que roube quem quiser, já que nos basta nosso SENHOR, que não nos abandonará, conforme prometeu. Sofrer e sofrer! Cruz e cruz! – esse é o direito dos cristãos e nenhum outro.[59]

Segundo os camponeses, que lutavam pelo estabelecimento de uma justiça social, todo aquele que abusasse de seu poder pelo uso da força para fazer valer seus interesses não podia evidentemente continuar no comando, daí sua revolta. Lutero divergiu desse pensamento porque, ao contrário daqueles, tinha nos príncipes, senão o bem sem mescla, pelo menos o mal necessário. O que era autoridade para Martinho Lutero, segundo sua visão, não o era para os camponeses conforme a aplicação dada a esse poder. Lutero observou ainda que nada podiam fazer, a não ser desistir de lutar em causa própria por justiça e liberdade, outro argumento inaceitável para os camponeses, pois, se não podiam lutar em causa própria, a quem recorrer se seus tiranos eram as próprias autoridades? Para Lutero, a ninguém, porque a maior autoridade terrena (palavra de Deus), aliás, única autoridade acima desses poderosos, não versava sobre assuntos dessa ordem, ou seja, políticos. Nas poucas passagens em que fala de autoridade, o Evangelho simplesmente justifica a sua existência e a sua necessidade.

Acontece que o Evangelho não se envolve com assuntos seculares, mas fala da vida no mundo como sujeita a sofrimentos, injustiça, cruz, paciência e desprendimento de bens e vida temporais. Como poderia o Evangelho combinar com vocês, se procuram apenas fachadas para seu movimento não-evangélico e acristão, sem se darem conta que com isso zombam do santo Evangelho de Cristo, fazendo dele um pretexto? Portanto, vocês têm que tomar uma atitude diferente no caso; ou desistem de tudo e se submetem ao sofrimento de injustiça, se quiserem ser cristãos; ou, se quiserem continuar com o movimento, achem um nome diferente e não pretendam ser chamados e considerados cristãos. Aqui não há meio termo nem outra escolha.“[60]

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As idéias políticas que emergem dos textos de Lutero sobre a Guerra dos Camponeses nos dão a entender uma política absolutista principesca ou regionalizada, de ordenação divina e, portanto, inquestionável. É claro que, se por um lado não acompanhou a modernidade emergente que a arte, a política, a economia desenvolviam nesse período, por outro, acabou contribuindo para uma modernização do mundo, discutindo uma definição mais clara entre aquilo que pertencia ao religioso ou ao secular, ao espiritual ou ao material, à Igreja ou ao Estado, ambos amalgamados numa relação de parasitismo mútuo que impedia e prejudicava a criação de um Estado laico moderno e uma religião verdadeiramente cristã, nos moldes da antiga Igreja do cristianismo primitivo. Maquiavel também discutiu sobre o papel do Estado.[61] Embora tenham escrito sobre suas funções e seus limites, o fizeram com objetivos diametralmente opostos, ou seja, enquanto Lutero pensava numa completa espiritualização da Igreja, Maquiavel almejava uma maior laicização do Estado.

Lutero escreveu sobre a Guerra dos Camponeses e sobre o espírito revoltoso valendo-se de concepções teológicas surgidas a partir de sua interpretação bíblica. Utilizou-se de algumas passagens deliberadamente escolhidas para justificar sua conivência e seu apoio aos nobres. A partir de um livro considerado sagrado, de onde se extraem ensinamentos que são a fonte para muitas religiões, Lutero conseguiu defender ações violentas e repressivas por parte de príncipes e senhores comprometidos com a miséria e o sofrimento dos camponeses, que culminaram na chacina de 1525. “Por isso não há porque hesitar aqui. Não cabem também paciência e misericórdia. Aqui é hora de espada e de ira, e não hora de misericórdia.[62] É preciso lembrar ainda que suas idéias não influenciaram nas decisões tomadas por nobres e plebeus nos violentos acontecimentos de maio de 1525 na Turíngia, mas foram suficientes “para que o reformador se tornasse alvo de duras críticas, seja da parte de opositores, seja da parte de simpatizantes da Reforma.[63] Lamentavelmente, o pensamento político de Lutero serviu apenas para legitimar a exploração exercida por uma pequena parcela da sociedade alemã do século XVI, que, aliás, mesmo beneficiada por esses escritos, ignorou seus conselhos, advertências ou ameaças, e com a guerra e o sangue promoveu o grande flagelo que manchou violentamente a história da Alemanha naquele século, exterminando dezenas de milhares de camponeses. Varia de 70.000 a quase 100.000 o número de mortos nesses confrontos.

Evidentemente que a partir das idéias políticas de Lutero extraídas dos seus escritos sobre a Guerra dos Camponeses e sobre os teólogos revolucionários deve-se considerar sua condição de teólogo e homem muito mais preocupado com a salvação da alma do que com o bem-estar físico do corpo. Se seus argumentos surgiram do desenvolvimento natural de sua teologia ou se são conseqüências de interesses próprios e obscuros, somente a sua consciência poderá responder a essas perguntas. As limitações inerentes ao ser humano impedem que se possua com propriedade o conhecimento de todos os ramos da ciência e do saber, e Lutero não fugiria a essa regra, decepcionando involuntariamente aqueles que o viram, ou o vêem, como um enviado divino ou profeta infalível, apto a solucionar ou capaz de esclarecer toda e qualquer polêmica. Suas especulações teológicas já avançadas para o efervescente século XVI contribuíram para a consolidação do pensamento moderno e por isso ele teve grandes méritos, sendo reconhecido ainda em nossos dias. Entretanto, não exijamos dele mais do que podemos exigir de um determinado e corajoso teólogo daquele século. O impacto de sua mensagem ultrapassou os limites do espaço e do tempo, o que lhe garante figurar entre os grandes nomes da humanidade; contudo, sua vida, suas ações e suas palavras demonstram que não foi um homem nem infalível e perfeito, nem tolo e ignorante, foi simplesmente Lutero, de posse de todos os seus desejos, medos e interesses.

– BIBLIOGRAFIA
A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 8. ed. São Paulo: Paulus, 2000.

BONI, Luiz Alberto de (Org.). Escritos Seletos de Martinho Lutero, Tomás Müntzer e João Calvino. Petrópolis: Vozes, 2000.

LANGENBUCHER, Wolfgang. Antologia Humanística Alemã. Porto Alegre: Globo, 1972.

LUTERO, Martinho. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, Acerca da Melhoria do Estamento Cristão (1520). 1989. p. 277-340. (Obras Selecionadas, 2).

______. Acerca da Questão, Se Também os Militares Ocupam uma Função BemAventurada (1526). 1996. p. 360-401. (Obras Selecionadas, 6).

______. Carta Aberta aos Burgomestres, Conselho e Toda a Comunidade da Cidade de Mühlhausen (1524). 1996. p. 300-303. (Obras Selecionadas, 6).

______. Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o Espírito Revoltoso (1524). 1996. p. 284-299. (Obras Selecionadas, 6).

______. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses (1525). 1996. p. 330-336. (Obras Selecionadas, 6).

______. Discurso do Dr. Martinho Lutero perante o Imperador Carlos e os Príncipes na Assembléia de Worms (1521). 1996. p. 121-126. (Obras Selecionadas, 6).

______. Exortação à Paz: Resposta aos Doze Artigos do Campesinato da Suábia (1525). 1996. p. 304-329. (Obras Selecionadas, 6).

______. Programa da Reforma: Escritos de 1520. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1989. (Obras Selecionadas, 2).

______. Fundamentação da Ética Política, Governo – Guerra dos Camponeses, Guerra contra os Turcos – Paz Social. São Leopoldo: Sinodal, 1996. (Obras Selecionadas, 6).

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

MÜNTZER. Tomás: Manifesto de Praga (1521). In: BONI (Org.). Escritos Seletos, 2000. p. 175-184.

______. Interpretação do Segundo Capítulo do Profeta Daniel (1524). In: BONI (Org.). Escritos Seletos, 2000. p. 185-204.

______. Pronunciamento de Defesa Altamente Motivado (1524). In: BONI (Org.). Escritos Seletos, 2000. p. 205-226.

Literatura de Apoio
ARNAUT DE TOLEDO, Cézar Alencar. Instituição da Subjetividade Moderna: A Contribuição de Inácio de Loyola e Martinho Lutero. Campinas, 1996. (Tese de Doutorado).

BLICKLE, Peter. Die Revolution von 1525. 3. erweiterte Auflage. Oldenbourg, München, 1993.

BURCKHARDT, Jacob. O Renascimento Italiano. Lisboa: Presença. Estudos Teológicos, 42(1):58-80, 2002.

DREHER, Martin N. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. São Leopoldo: Sinodal, 1996.

______. A Igreja Medieval, São Leopoldo: Sinodal, 1994.

ELTON, G. R. A Europa durante a Reforma 1517-1559. Lisboa: Presença, 1982.

ENCICLOPÉDIA BARSA, Rio de Janeiro – São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 1993.

FISCHER, Joachim H. Introduções sobre Governo. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. v. 6, 1996. p. 117-120.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média, Nascimento do Ocidente. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1980.

FRÖHLICH, Roland. Curso Básico de História da Igreja. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1987.

GARIN, Eugênio. Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano. São Paulo: Unesp, 1994.

GUREVIC, Aron. O Homem Medieval. 1989.

LEFF, Gordon. O Trivium e as Três Filosofias. In: RUEGG (Org.). Uma História da Universidade da Europa. s. d.

LIENHARD, Marc. Martim Lutero, Tempo, Vida e Mensagem. São Leopoldo: Sinodal, 1998.

MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero a Nossos Dias. São Paulo: Loyola, 1997.

MISKIMIN, Harry. A Economia do Renascimento Europeu 1300-1600. Lisboa: Estampa, 1984.

NORTH, John. O Quadrivium. In: RUEGG (Org.). Uma História da Universidade da Europa. s. d.

RIETH, Ricardo W. Introdução a Carta Aberta a Respeito do Rigoroso Livrinho Contra os Camponeses. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. v. 6, 1996. p. 340-341.

______. Introdução (com notas) a: Exortação à Paz: Resposta aos Doze Artigos do Campesinato da Suábia de 1525. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. v. 6, 1996. p. 304-336.

______. Introdução à Guerra dos Camponeses. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. v. 6, p. 273-283.

RUEGG, Walter (Org.). Uma História da Universidade na Europa. v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s. d.

SANTOS, Pedro Ivo. Renascimento, Reforma e Guerra dos Trinta Anos. Rio de Janeiro: JCM.

SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

– NOTAS
1. Esse trabalho apresenta os resultados de um projeto do Programa de Iniciação Científica (PIC) sob a orientação do Prof. Dr. Peter Johann Mainka, UEM – DFE/PPE e a co-orientação do Prof. Dr. Cézar de Alencar Arnaut de Toledo, UEM – DFE/PPE.

2. Cf. FRANCO JÚNIOR, 1980, p. 11.

3. Os Doze Artigos dos Camponeses encontra-se em original na língua alemã in: BLICKLE, 1993, p. 24-89. Informações gerais sobre os artigos encontram-se in: Martinho LUTERO, Obras Selecionadas, v. 6, 1996, p. 280s.

4. Refere-se ao documento dos camponeses intitulado “Ação, ordem e instrução estabelecidas por todas as hordas e grupamentos dos camponeses que se comprometeram mutuamente”, cf. RIETH, 1996, p. 307.

5. Martinho LUTERO, Exortação, 1525, p. 307.

6. Id., Carta aos Príncipes, 1524, p. 284-299.

7. Id., Exortação, 1525, p. 306-329.

8. Para vida e obra de Lutero, cf. LIENHARD, 1998, p. 31-42.

9. Cf. SANTOS, s. d., p. 73.

10. Metade da renda do primeiro ano de todos os feudos.

11. Martinho LUTERO, À Nobreza, 1520, p. 291.

12. Cf. ELTON, 1982, p. 14.

13. Martinho LUTERO, Os Militares, 1526, p. 364.

14. Martinho LUTERO, À Nobreza, 1520, p. 282.

15. ELTON, 1982, p. 17.

16. John Wyclif, teólogo inglês cuja pregação antipapal e anticlerical o levou a julgamento em 1377 perante o arcebispo de Canterbury; seus seguidores, porém, incluindo muitos nobres, conseguiram libertá-lo. Em 1381, foi responsabilizado por uma revolta camponesa, embora seus escritos pouco houvessem contribuído para o levante. Seus inimigos encontraram em sua obra trechos considerados comprometedores, perdendo, com isso, o apoio dos nobres. Cf. Enciclopédia BARSA, v. 15, 1993, p. 506.

17. Jan Huss, sacerdote tcheco que considerava o Evangelho como a única lei e, assim como Wyclif, não aceitava a supremacia papal. Por isso, Huss pode ser considerado um dos precursores da Reforma Protestante; mas, além disso, ele defendeu com veemência os interesses da nação tcheca. No Concílio de Constança, em 1415, foi condenado à fogueira. Cf. Enciclopédia BARSA, v. 9, 1993, p. 145s.

18. Girolamo Savonarola, pregador dominicano italiano que se tornou conhecido em Florença por seus famosos sermões (sobre a 1 Epístola de São João). Savonarola promoveu mudanças na constituição, na justiça e na legislação tributária, estabelecendo um regime contra a nobreza, baseado em um rigorismo religioso e moral. Depois que ele perdeu o apoio do povo, foi executado publicamente em 1498. Cf. Enciclopédia BARSA, v. 14, 1993, p. 185s.

19. Cf. RIETH, Introdução à Guerra dos Camponeses, 1996, p. 275.

20. Cf. a tradução dos doze artigos in: LANGENBUCHER, 1972, p. 14-16.

21. ELTON, 1982, p. 69.

22. Martinho LUTERO, Carta aos Príncipes, 1524.

23. Para vida e obra de Tomás Müntzer consultar: Ernst BLOCH, Thomas Münzer, teólogo da
Revolução, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.

24. MÜNTZER, Manifesto, 1521, p. 175.

25. Id., ibid., p. 179.

26. Cf. ibid., p. 181.

27. Ibid., p. 182.

28. Ibid.

29. MÜNTZER, Pronunciamento, 1524, p. 212.

30. DREHER, A Crise, 1996, p. 92.

31. MÜNTZER, Pronunciamento, 1524, p. 212.

32. Martinho LUTERO: Carta aos Príncipes, 1524, p. 290.

33. Id., ibid., p. 292.

34. Ibid., p. 295.

35. Ibid., p. 296.

36. Is 5.8: “Ai de vós, os que ajuntais casa com casa e ides acrescentando campo a campo, até chegar ao fim de todo o terreno! Porventura haveis de habitar sós no meio da terra?”.

37. Mq 3.2s: “E, não obstante isso, vós aborreceis o bem e amais o mal; arrancais violentamente a pele (ao povo) e a carne de cima de seus ossos? Comeram a carne do meu povo, arrancaram-lhe a pele, quebraram-lhe os ossos, partiram-no como para fazer cozer num caldeirão, como carne que se quer fazer ferver dentro de uma panela. Um dia clamarão ao Senhor, o qual não os ouvirá e lhes esconderá a sua face naquele tempo, como merecer a iniqüidade das suas ações.”

38. MÜNTZER, Pronunciamento, 1524, p. 212.

39. Martinho LUTERO, Exortação à Paz, 1525, p. 307.

40. Id., ibid., p. 328.

41. Ibid., p. 307.

42. Ibid., p. 309.

43. Ibid., p. 308.

44. Ibid., p. 311.

45. Ibid., p. 309.

46. Ibid.

47. Ibid., p. 314.

48. Ibid., p. 315.

49. Ibid., p. 315.

50. Ibid., p. 320.

51. Ibid., p. 328.

52. Martinho LUTERO, Contra as Hordas, 1525, p. 318. “É preciso também ter o direito e o poder instituído por Deus para usar a espada e castigar a injustiça.”

53. Id., ibid., p. 332.

54. Ibid., p. 318.

55. Id., Exortação à Paz, 1525, p. 317. “Caros irmãos, os cristãos não existem em tão grande
número que tantos se possam juntar num só grupo. O cristão é uma ave rara.”

56. Ibid., p. 309.

57. Ibid., p. 326.

58. Id., Carta aos Príncipes, 1524, p. 299.

59. Id., Exortação à Paz, 1525, p. 317.

60. Ibid., p. 323.

61. Cf. MAQUIAVEL, O Príncipe, 1999.

62. Martinho LUTERO, Exortação à Paz, 1525, p. 335.

63. Ricardo W. RIETH, Introdução à Carta Aberta, 1996, p. 340.

 

Fonte: Faculdade EST / Link Direto


Gostou do artigo? Comente!
Nome:

E-Mail:

Comentário:



- Nenhum comentário no momento -

Desde 3 de Agosto de 2008