KIERKEGAARD, LUTERO E O LUTERANISMO: POLÊMICA E DEPENDÊNCIA


Categoria: Filosofia, Martinho Lutero
Imagem: Kierkegaard e Lutero / Imagem: Google Imagens e montagem feita por nós.
Publicado: 10 de Abril de 2024, Quarta Feira, 14h19

Por Jonas Roos
– Graduado em Filosofia e doutor em Teologia, com estágio pós-doutoral em Filosofia. Professor no Departamento e no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da UFJF.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.2, dez. 2017, p.147-170 ISSN: 2317-9570

Resumo
Kierkegaard tem uma relação complexa com Lutero e com o luteranismo. Se cresce em um ambiente marcadamente luterano e por este é fortemente influenciado, ao mesmo tempo é polêmico tanto com relação ao reformador quanto com relação a seu legado. Tomando as comemorações dos quinhentos anos da Reforma Protestante como mote, este texto quer investigar os meandros desta relação. Para isso, analisa inicialmente algumas polêmicas e principais críticas de Kierkegaard a Lutero e à igreja luterana da Dinamarca, particularmente a partir de algumas anotações de Kierkegaard em seus Diários. Num segundo momento, analisa a dependência de Kierkegaard com relação à dialética de lei e evangelho como pensada pelo reformador. Esta análise percorrerá uma série de obras específicas de Kierkegaard e, então, fará um breve exame do modo como Kierkegaard pensou o plano total de sua obra como igualmente dependente daquela dialética. Por fim, na conclusão, será argumentado que Kierkegaard herda de Lutero e do luteranismo a dialética de lei e evangelho e critica Lutero e o luteranismo em nome desta mesma dialética.

Este texto nasce por ocasião das comemorações dos quinhentos anos da Reforma Protestante. No último dia 31 de outubro, como sabemos, houve festejos em todo o mundo lembrando a data em que Lutero teria pregado suas noventa e cinco teses na porta da igreja de Wittenberg. Kierkegaard cresceu em um contexto luterano, estudou teologia numa faculdade luterana, e, ao longo de sua vida, por diversas vezes pensou em ser pastor em alguma comunidade no interior da Dinamarca. Para além disso, sua obra é rica em modos de pensamento remanescentes ao reformador. Ao mesmo tempo, contudo, foi bastante polêmico com relação a Lutero e mais ainda com relação ao luteranismo dinamarquês. Sua relação com o reformador não é nada simples, antes, bastante multifacetada. Este texto procura esclarecer esta relação mostrando, numa primeira parte, algumas polêmicas de Kierkegaard com relação a Lutero e ao Luteranismo. Numa segunda parte, mostrará como a dependência de Kierkegaard com relação a Lutero se dá em torno da dialética de lei e evangelho, que herda do reformador. Nesta parte, esta dialética será mostrada primeiramente em algumas obras importantes de Kierkegaard e, depois, numa olhada ampla sobre a estrutura geral de sua obra, que obedece àquela dialética. Por fim, nas conclusões, se mostrará que Kierkegaard herda de Lutero e do Luteranismo a dialética de lei e evangelho e os critica em nome desta mesma dialética.

AS POLÊMICAS E AS PRINCIPAIS CRÍTICAS
Em 1850, sob o título Metamorfoses de Lutero, Kierkegaard analisa em seu Diário, de modo muito livre e irônico, as principais mudanças que teriam ocorrido na interpretação que se fez da figura de Lutero na Reforma. Daquela citação, extraio a conclusão de Kierkegaard, apenas para que sintamos o tom polêmico de nosso autor com relação a Lutero:

[…] Para usar o vernáculo, pode-se dizer hoje que o significado da Reforma é interpretado da seguinte forma: Lutero colocou as garotas, o vinho e o jogo de cartas todos nos seus devidos lugares na Igreja Cristã, como ingrediente essencial, sim, como a verdadeira consumação, em contraste com a imperfeição da pobreza, da ora- ção e do jejum. Para tanto, a me- lhor maneira de celebrar sua me- mória é a seguinte. Coro do clero e leigos: um brinde para Marti- nho Lutero! Hurra! hurra! Este foi um bom brinde! Hurra! Mais uma vez, hurra! hurra! Para preservar sua memória, sua ima- gem poderia ser colocada nas car- tas como o Valete de Paus. Não basta erguer monumentos a ele. Não, façamos dele o Valete de Paus, e dificilmente haverá um pastor que não terá ocasião de, sempre de novo, lembrar de Mar- tinho Lutero e da Reforma (Jour- nals and Papers, 2544 [Pap.X3 A 234 n.d., 1850])1.

O tipo de crítica que vemos aqui é bastante comum nos últimos anos de Kierkegaard (especialmente a partir de 1850), de que Lutero teria secularizado o cristianismo, tornado o cristianismo algo cultural, público. Nesta fase, as críticas a Lutero normalmente não se distinguem das criticas ao que poderíamos chamar de luteranismo ou cristandade. Nesta época Kierkegaard está claramente preocupado com a situação de seu contexto, de uma igreja estatal luterana e sua relação com a cultura dinamarquesa, e não com o estudo sistemático do pensamento de Lutero (o que não significa que aquilo que lera de Lutero, tenha lido com desatenção ou de modo ligeiro2).

Em 1854, nos Diários, esta questão de uma mistura inadequada de luteranismo e cultura, luteranismo e público, permanece como uma preocupação:

Oh, Lutero, você tem uma enorme responsabilidade, pois quando eu olho mais de perto eu vejo ainda mais claramente que você derrubou o papa e colocou “o público” no trono. Você alterou o conceito de “martir” do Novo Testamento e ensinou os homens a vencer pelo número. (Journals and Papers, 2548 [Pap. XI 1 A 108 n.d., 1854]).

Daí que, para alguém que dedicara boa parte de sua vida pensando as determinações conceituais da relação entre cristianismo e indivíduo, não seria difícil chegar àquela famosa tese, escrita e reescrita nos Diários, e publicada num artigo de jornal em 26 de janeiro de 1855, sob o título: “Uma tese, apenas uma.” Na abertura daquele artigo, lemos: “Oh, Lutero, tu tinhas 95 teses – terrível! E, contudo, num sentido mais profundo, quanto mais teses, menos terrível. A questão está muito mais terrível – há apenas uma tese. O cristianismo do Novo Testamento não existe mais [er slet ikke til]3” (KI- ERKEGAARD, 1998a, p. 39).

Kierkegaard aponta em seus Diários uma clara razão para esta, digamos, morte do cristianismo, e a conecta com a vida de Lutero e com o subsequente Luteranismo. A questão central é que Lutero experimentou em sua vida uma grande angústia religiosa e uma profunda consciência do pecado. Como resposta a esta situação, encontrou a mensagem da justiça de Deus como algo que se oferece, ou seja, a centralidade e unicidade da graça operada por Cristo. Kierkegaard está de acordo com tudo isso. O problema surge quando este modo de entender o cristianismo, que parte de uma experiência pessoal e contextualizada, se torna um paradigma a pessoas que estão fora do contexto daquela experiência determinada. Esta questão é crucial para Kierkegaard; vejamos, então, em seus próprios termos, nos Diários:

[…] Não terá surgido de fato uma grande confusão através de Lutero, por mais inocente, em certo sentido, que aquele honesto homem estivesse no assunto? Vejamos como as coisas aconteceram com Lutero! Depois de cerca de 20 anos de temor e tremor e de provação [Anfægtelse] espiritual tão terrível que – note bem! – dificilmente há um indivíduo em uma geração que experimente algo semelhante, sua natureza humana reagiu, por assim dizer, e esse temor e tremor foi transfigurado na mais extasiante e feliz confiança e alegria – maravilhoso! Mas então o que acontece? No Protestantismo, este princípio é transformado em algo universal. Deste modo e apenas deste modo (pois este é o verdadeiro cristianismo) o cristianismo deve ser apresentado, esse recurso extremamente poderoso e essa confiança que Lutero, em temor e tremor e provações espirituais, lutando até a morte, descobriu no limite da sua angústia [Angst] – isso deve ser proclamado como o único meio para todos, e, contudo, não há um único indivíduo em cada geração que seja posto à prova assim – contudo, se eliminarmos este pressuposto, este antecedente assustador, esse temor e tremor e essa provação espiritual, tudo isso facilmente se torna uma mentira, uma espantosa mentira […] (Journals and Papers, 2544 [Pap.XI2 A 303 n.d., 1853-54]).

Nessa mesma referência dos Diários Kierkegaard deixa bem claro que este é um pensamento que lhe é muito recorrente, tão recorrente que se sente com relação a ele como quando uma pessoa se acostuma a andar em um determinado caminho a tal ponto que, quando sai de casa, de repente percebe que, involuntariamente, estava caminhando mais uma vez naquele caminho de sempre. Na citação que acabamos de ler, como muitas vezes acontece, uma avaliação de Lutero e do luteranismo andam juntas numa mesma reflexão. O contraste entre a exigência da lei e a dádiva do evangelho, contraste que era vivo para Lutero, é tirado de cena na cristandade, e, ainda assim, Lutero é tomado como normativo. Está bem claro para Kierkegaard que a consequência direta disso é a secularização do Cristianismo, a confusão entre cristianismo e cultura, entre cristianismo e público (Jour- nals and Papers, 2513 [Pap. X2 A 558 n.d., 1850]).

Kierkegaard discute com Lutero, é critico a Lutero e, normalmente quando associa Lutero e Luteranismo, é polêmico. Por outro lado, tanto os Diários como a própria obra publicada deixam claro que Lutero teve uma importância formativa no pensamento de Kierkegaard. Em 1838, por exemplo, quando está com vinte e cinco anos, Kierkegaard compara Lutero a Copérnico: “Aconteceu ao Catolicismo a mesma coisa que com o globo inteiro. Outro Copérnico (Lutero) veio e descobriu que Roma não é o centro sobre o qual tudo gira, mas apenas um ponto periférico.” (Journals and Papers,2458 [Pap.II A 289, 2 de novembro de 1838]). Dez anos depois, num tom semelhante, Kierkegaard afirmará “Hoje eu li o sermão de Lutero de acordo com o plano; foi o Evangelho sobre os dez Leprosos. Oh, Lutero ainda é o mestre de todos nós.” (Journals and Papers, 2465 [Pap.VIII1 A 642, 22 de abril de 1848]).

Vimos que quando Kierkegaard pensa em Lutero em conexão com os problemas do cristianismo estabelecido de seu tempo, ele normalmente é polêmico em relação ao reformador. Embora isso aconteça bastante, este não é sempre o caso. Em 1850, quando já começa a se preparar para a polêmica com a Igreja da Dinamarca, Kierkegaard pensa em Lutero em oposição ao cristianismo estabelecido e, com uma entrada sob o título de Lutero como point de vue, imagina a seguinte situação: “Eu poderia ser tentado a tomar o livro de sermões de Lutero e extrair muitas frases e ideias, todas grifadas na minha cópia, e publicá-las para mostrar o quão distante hoje em dia a pregação está do cristianismo, de modo que não seja dito que sou eu quem está exagerando”. (Journals and Papers, 2516 [Pap.X3 A 127 n.d., 1850]). Os modos pelos quais Kierkegaard lê Lutero são bastante variados. Nesta entrada há uma clara diferenciação entre Lutero e o Luteranismo da Dinamarca, de modo que Lutero poderia ser usado como critério para contradizer a noção de cristianismo da Igreja institucionalizada.

LEI E EVANGELHO EM LUTERO
Até aqui vimos pontos específicos, a partir dos Diários, nos quais Kierkegaard é crítico, polêmico ou elogioso a Lutero. Poder-se-ia coletar várias dessas anotações e, ao final, colocá-las na balança para tentar, a partir disso, entender algo da relação de Kierkegaard para com Lutero. O que pretendo daqui para a frente, contudo, é desenhar uma relação mais ampla e profunda do dinamarquês em relação ao reformador. Nesta segunda parte, na qual me ocupo com a dependência de Kierkegaard em relação a Lutero, pretendo mostrar que Kierkegaard elabora suas ideias a respeito do cristianismo tendo como pano de fundo a dialética de Lei e Evangelho, como pensada por Lutero e difundida no Luteranismo.

Esta hipótese, contudo, lida com a dificuldade de se estabelecer a medida da influência de Lutero no pensamento do jovem Kierkegaard. Note-se que em 1847, quando boa parte da sua obra já havia sido publicada, ele afirma nos Diários: “eu nunca realmente li Lutero” (Journals and Papers, 2463 [Pap. VIII 1 A 465 n.d., 1847]). Por outro lado, dois anos antes, afirma, também nos Diários: “Quando se lê Lutero, definitivamente se tem a impressão de um espírito sábio e seguro que fala com uma decisão que é ‘gewaltig’ [poderosa, forte]” (Journals and Papers, 2460 [Pap.VI A 108 n.d., 1845). Ainda antes disso Lutero ou suas ideias são referidas por várias vezes, por exemplo em 1843, em Ou-ou, Lutero aparece como aquele que recuperou o conceito de fé em seu tempo (KIERKEGAARD, 1987a, p. 465). Ou, ainda, em 1841 a dialética de Lei e Evangelho, característica do pensamento luterano, é referida na tese sobre O Conceito de Ironia. Nota-se que Kierkegaard tem um certo conhecimento de Lutero desde cedo. Se não se pode saber exatamente a dimensão deste conhecimento, deve-se considerar que Kierkegaard: cresceu indo aos cultos da igreja luterana; recebeu forte influência religiosa de seu pai (que era um luterano pietista); frequentou o ensino confirmatório na igreja luterana; aprendeu o catecismo na escola; estudou teologia em uma faculdade luterana; acompanhou desde pequeno discussões filosófico-teológicas na casa de seu pai; leu autores fortemente influenciados por Lutero, como, por exemplo, Johann Georg Hamann, (que Kierkegaard começa a ler bem cedo. Nos Papirer há anotações a partir de 1836) ou ainda, por fim, mais tardiamente, suas próprias leituras dos Sermões de Lutero (ROOS, 2007).

Todas essas são determinações aproximativas, para usar a linguagem de Climacus e, portanto, não nos permitem decidir nada a respeito. Ainda assim, contudo, quero agora pressupor que a dialética de lei e evangelho, como elaborada por Lutero e como difundida no luteranismo, ilumina o pensamento de Kierkegaard. Para isso, esboçarei elementos desta dialética e, depois, partirei para uma análise de alguns textos de Kierkegaard, e de algo da estrutura de sua obra, a fim de analisar a presença desta dialética nos textos kierkegaardianos.

A dialética de lei e evangelho não se constitui apenas como um tema importante na teologia de Lutero, mas como uma dialética fundamental que ilumina a relação do teólogo para com o texto bíblico e, portanto, ilumina os diversos temas da teologia. Daí que Lutero afirme que “Quase toda a Bíblia e o entendimento de toda a teologia dependem da correta compreensão de lei e evangelho” (LUTERO, apud Ebeling, p. 88). Ou, ainda: “Já ouvistes muitas vezes que não há melhor maneira de transmitir e preservar a pura doutrina do que seguir este método, ou seja, dividir a doutrina cristã em duas partes: lei e evangelho” (LUTERO, apud Ebeling, p. 88).

De modo bastante sintético, pode-se dizer que Lutero entende a lei como tudo aquilo que Deus exige do ser humano (amor, justiça, bondade etc). Já o evangelho constitui aquilo que Deus oferece e concede em graça e amor. A distinção entre ambos é clara. Tal distinção, contudo, não pode significar separação, antes, devem ser entendidos como duas faces de uma mesma relação. Para Lutero, Deus se relaciona com o ser humano com lei e evangelho e, por isso, o reformador percebe a palavra de Deus sempre como simultaneamente lei e evangelho, o aspecto da exigência, e o aspecto gracioso (WEG- NER, 2005, p. 142).

A lei, no entendimento de Lutero, pode ser dividida em seu sentido civil e político, por um lado, e em seu sentido teológico, por outro. Este segundo sentido tem basicamente duas funções. A primeira é a de revelar o ser humano como pecador e a segunda, decorrente desta, é a de conduzir o ser humano a Cristo, ao evangelho4.

Vejamos agora, em detalhe, como esta lógica está presente em algumas obras de Kierkegaard.

LEI E EVANGELHO EM ALGUMAS OBRAS DE KIERKEGAARD
O Conceito de Ironia (1841) – Já na tese sobre o Conceito de Ironia, Kierkegaaard percebe uma clara analogia entre Sócrates, de um lado, e a dialética de lei e evangelho, de outro. Aquilo que para o cristianismo funciona como a lei, que exige perfeição sem nada oferecer, é análogo à ironia de Sócrates, que esvazia o indivíduo de conteúdo sem nada oferecer. Por outro lado, aquilo que na dialética luterana funciona como evangelho e graça, aquilo que se oferece depois de se ter passado pelo crivo da lei, é análogo à subjetividade socrática. Em sua tese, Kierkegaard escrevera:

[…] assim como nos judeus, que afinal eram o povo da promessa, o ceticismo da lei teve de abrir caminhos, precisou, com sua negatividade, por assim dizer, consumir e provar pelo fogo o homem natural, a fim de que a graça não fosse tomada em vão, assim também nos gregos, povo que no sentido mundano bem pode ser chamado de escolhido, povo afortunado, cuja pátria era a terra da harmonia e da beleza, povo em cujo desenvolvimento o puramente humano percorreu suas determinações, povo da liberdade, assim também nos gregos em seu mundo intelectual despreocupado o silêncio da ironia tinha de ser aquela negatividade que impedia que a subjetividade fosse tomada em vão. Pois a ironia é, assim como a lei, uma exigência e a ironia é uma exigência enorme, pois ela desdenha a realidade e exige a idealidade. É claro que a idealidade já está presente neste desejo, mesmo que apenas como possibilidade, pois no aspecto espiritual o desejado já está sempre no desejo, já que o desejo é visto como as moções mesmas do desejado no desejante. E assim como a ironia recorda a lei, assim também os sofistas recordam os fariseus, que operavam no terreno da vontade exatamente da mesma maneira que os sofistas no do conhecimento. O que Sócrates fez com os sofistas foi dar-lhes o instante seguinte, no qual a verdade momentânea se dissolvia em nada, quer dizer, ele fazia a infinitude engolir a finitude. Mas a ironia de Sócrates não estava dirigida apenas contra os sofistas, estava dirigida contra todo o subsistente, de tudo isto ele exigia a idealidade, e esta exigência era o juízo que julgava e condenava o helenismo. Mas sua ironia não é o instrumento que ele usava a serviço da ideia, a ironia é seu ponto de vista, e mais ele não tinha. Se ele tivesse possuído a ideia, sua atividade aniquiladora jamais teria sido tão penetrante. Aquele que proclamava a lei não era o que também trazia a graça; o que fazia valer a exigência em todo o seu rigor não era aquele que podia satisfazer a exigência. Entretanto é preciso lembrar que entre a exigência de Sócrates e seu preenchimento não havia um abismo tão profundo como entre a lei e a graça. Na exigência de Sócrates o preenchimento estava contido potencialmente (KIERKEGAARD, 1991, p. 165-166).

Kierkegaard compreende, então, que a negatividade da ironia tem de desempenhar um papel crucial para um contexto onde todos já têm a positividade como algo dado de antemão. Todos são, ninguém se torna. E, por isso, tanto graça quanto subjetividade são tomadas em vão. E nesse contexto a religião acaba por se transformar naquela instância que deixa as pessoas pesadas, duras, autosatisfeitas, acomodadas. A ironia socrática desempenha papel análogo ao da lei, como na dialética de lei e evangelho, como elaborada por Lutero, para que Kierkegaard lide com o problema do tornar-se cristão.

Migalhas Filosóficas (1844) – Em Migalhas Filosóficas a dialética de lei e evangelho se torna patente na figura do mestre, que desempenha papel central na estrutura da obra. O mestre é a vinda da verdade, o eterno no tempo, o chamado fato-absoluto. Esta vinda da verdade, contudo, deve antes de mais nada revelar a não-verdade do discípulo, deve trazer esta não-verdade à consciência. O mestre, assim, é aquele que aproxima o aprendiz de si, mas que, para isso, precisa primeiro repeli-lo. Ou seja, o mestre de Migalhas coloca em evidência o pecado, o não cumprimento da lei e suas consequências e, paradoxalmente, oferece ao aprendiz a verdade e a condição para compreendê-la, o evangelho. É certo que o paradoxo, em Migalhas, é constituído pela união do eterno com o temporal. Entretanto, há que se enfatizara decorrência desta união do eterno com o temporal que se manifesta na união paradoxal da distância infinita e da igualdade que ama o discípulo e quer abolir toda a diferença na graça e no amor, mantendo-se, contudo, diferente. Para Climacus, é exatamente esse aspecto fundamental – que une em si paradoxalmente juízo e graça, lei e evangelho – o que faz do paradoxo cristológico o Paradoxo Absoluto. Segundo o autor:

[…] o mesmo paradoxo tem essa dupla natureza pela qual se mostra como o absoluto: negativa, ao colocar em descoberto a diferença absoluta do pecado; positiva, ao querer abolir esta diferença absoluta na igualdade absoluta (KI- ERKEGAARD, 1995, p. 74).

Aí temos, claramente a dialética de lei e evangelho como moldura na qual o conceito central de Migalhas Filosóficas se desenha.

Para além disso, contudo, deve-se perceber ainda que Kierkegaard publica Migalhas Filosóficas a 13 de junho de 1844 e O Conceito de Angústia a 17 de junho do mesmo ano. Para além da dialética de lei e evangelho interna a Migalhas, esta obra se coloca num jogo dialético com O Conceito de Angústia. Uma tem em vista o problema dogmático do pecado original, mostrando que cada ser humano está na mesma posição de Adão com relação ao pecado e que, portanto, é responsável por sua situação5 e, a outra, traz a figura do mestre que, apesar do pecado, oferece a verdade e a condição para compreendê-la. O que está em jogo aqui, com a publicação conjunta de Migalhas e O Conceito de Angústia é a clássica dialética luterana que distingue a lei e o evangelho sem separá-los. O Conceito de Angústia e Migalhas Filosóficas são livros bem diferentes, mas, propositalmente, publicados juntos.

Pós-escrito às Migalhas Filosóficas (1846) – No Pós-escrito, como sabemos, há todo um desenvolvimento que busca determinar conceitualmente a subjetividade, lidando com o problema posto por Migalhas e em oposição à especulação. Esta, para Climacus, tentara ir além de Sócrates sem tê-lo compreendido corretamente, sem ter compreendido que, nas palavras de Climacus “o mérito infinito do socrático foi, precisamente, o de acentuar que o cognoscente é existente, e que o existir é o essencial” (KIERKEGAARD, 2013, p. 218). Se tentar ir além de Sócrates sem tê-lo compreendido é um grave equívoco de sua época, Climacus se pergunta, ainda assim, se não seria possível ir, de fato, mais além do socrático, mais além da conexão entre verdade e subjetividade como elaborada por Sócrates. Cito Climacus: “Portanto, a subjetividade, a interioridade, é a verdade; agora, há uma expressão mais interior para isso? Sim, se o dito: a subjetividade, a interioridade, é a verdade começar assim: A subjetividade é a inverdade.” (KIERKEGAARD, 2013, p. 218) Ou seja, na linha de Migalhas, no projeto B o aprendiz não está inicialmente de posse da verdade, mas na não-verdade. Assim como em Migalhas, aqui esta inverdade será chamada de pecado. Na dialética luterana de lei e evangelho, a lei é justamente o que possibilita a consciência do pecado. Mas, para Climacus, como poderia uma tal consciência tornar a interioridade mais interior? Ela não somente pode, mas é conditio sine qua non para isso. A razão é que a consciência do pecado fecha a porta da reminiscência, ou seja, a verdade não está mais no sujeito. A consciência do pecado tornou impossível retroceder. Nas palavras de Climacus:

Se já Sócrates havia percebido como era complicado, especulando, abstrair-se da existência e remontar à eternidade, quando nenhuma complicação havia para o existente senão o fato de que ele existia, além de que o existir fosse o essencial: agora ficou impossível. Ele precisa andar para a frente; recuar é impossível (KIERKEGAARD, 2013, p. 220).

O pecado torna o recuo impossível e gera a necessidade da vinda da verdade, como já fora estabelecido em Migalhas. Citando novamente o Pós-escrito:

se o sujeito acima mencionado foi impedido pelo pecado de retomar-se a si mesmo na eternidade, agora não deve mais se preocupar por causa disso, pois agora a verdade eterna, essencial, já não se encontra lá atrás, mas veio para a frente dele, pelo fato de ela mesma existir, ou ter existido, de modo que se o indivíduo, existindo, na existência, não alcançar a verdade, jamais a alcançará (KIERKEGAARD, 2013, p. 220).

A dialética de lei e evangelho enfatiza a impossibilidade da apropriação da verdade do sujeito pelo recuo ao passado e aponta a necessidade do encontro com a verdade no paradoxo do eterno que se presentifica na história. Aqui chegamos num ponto importantíssimo: a consequência da aplicação da dialética de lei e evangelho, por Kierkegaard, a suas questões, é justamente um enfatizar a existência. A verdade não é encontrada recuando na existência, mas na própria existência, na temporalidade, no paradoxo. A citação acima continua com as seguintes palavras: “a existência jamais poderá ser mais acentuada do que agora” (KIERKE- GAARD, 2013, p. 220). A apropriação da dialética de lei evangelho, em Kierkegaard, acentua a existência.

As Obras do Amor (1847) – Em As Obras do Amor a lei é radicalizada no dever de amar o próximo como a si mesmo, amar a pessoa que nada tem a oferecer em troca ou, ainda, amar o inimigo. “Tu ‘deves’ amar, pois isto é justamente o sinal do amor cristão, e constitui sua propriedade característica que ele contenha esta aparente contradição: que amar seja um dever” (KIERKEGAARD, 2005, p. 39- 40). Do dever de amar, interiorizado, provêm as obras do amor. Entretanto, enfatizando a dialética luterana Kierkegaard lembra, nos Diários, que as obras não podem ser entendidas como meritórias:

Boas obras no sentido de merecimento são naturalmente uma abominação a Deus. Entretanto, boas obras são exigidas de um ser humano. Mas elas deveriam ser e no entanto não deveriam ser; elas deveriam ser e no entanto dever-se-ia humildemente ser ignorante de elas serem significativas ou de que elas supostamente deveriam ter qualquer importância […] é como uma criança dando um presente aos pais, comprado, entretanto, com o que a criança recebera dos pais; toda a pretensão que por outro lado é associada a dar um presente desaparece já que a criança recebeu dos pais o presente que ela dá aos pais (Journals and Pa- pers,1121 [Pap.VIII1 A 19 n.d., 1847])

Nesta dialética, o padrão para as obras é a perfeição divina:

[e]nquanto amas o amado não te assemelhas a Deus, pois para Deus não há nenhuma predileção, coisa que em tua meditação muitas vezes te humilhou, mas também muitas vezes te reanimou. Enquanto amas teu amigo não te assemelhas a Deus, pois para Deus não há diferenças. Mas quando amas ao próximo, aí tu és como Deus (KIER- KEGAARD, 2005, p. 83-84).

Aqui, n’As Obras do Amor, a lei funciona como o padrão absoluto que tem por finalidade uma só coisa, arrancar as pessoas de seu egoísmo, pois, segundo Kierkegaard, “este consiste em amar-se a si mesmo; porém, se deve amar o próximo ‘como a si mesmo’, então o mandamento arranca, como que com uma gazua, o fecho do egoísmo, e com isso arrebata dele o homem” (KIERKEGAARD, 2005, p. 32). Para Kierkegaard, se o egoísmo não for radicalmente questionado, infinitamente questionado, não se pode fazer ética. Nesse sentido, poderíamos dizer que sem tal questionamento radical, poderíamos permanecer com La Rochefaucauld (2014), para quem nossas virtudes não são nada além de vícios disfarçados.

A lei do amor, em sua exigência infinita, fecha a porta para um retorno à própria verdade, como no socrático. O evangelho, por outro lado, se mostra como o amor que se dá a si mesmo. Isso está presente na oração que abre As Obras do Amor, ou na imagem da fonte invisível que alimenta o lago, no início do livro. Aqui, a existência ética é enfatizada na dialética de lei e evangelho que tira tudo para dar tudo. Segundo Kierkegaard, ao se apoiar em Deus uma pessoa perde

“[…] o que jamais perdeu homem algum que se tenha apoiado no mundo, nem mesmo perdeu o homem que mais perdeu – tu perderás absolutamente tudo”. E isto também é verdade, pois o mundo não é capaz de tirar verdadeiramente tudo, justamente porque ele não é capaz de dar tudo, isso só Deus pode fazer, Deus que tira tudo, tudo, tudo – para dar tudo […] (KIERKEGAARD, 2005, p. 127).

A lei do amor enfatiza a exigência ética posta na existência e o evangelho, como aparece em As Obras do Amor, deixa claro que o amor de Deus não é conquistado, mas se dá, se oferece, seja na imagem da fonte, na oração trinitária ou na figura de Cristo como aparece na obra.

A Doença para a Morte (1849) – Toda a lógica de A Doença para a Morte parte da intrincada definição de ser humano como posta em seu início. A partir daquela definição será possível entender o desespero como desarticulação da síntese e a fé como repousar no poder que estabeleceu a síntese e, portanto, como cura para o desespero. A lei, aqui, aparece mostrando a profundidade do desespero, mostrando que ele sempre retroage à síntese, ou seja, é responsabilidade do si mesmo e é uma posição, e não uma negação. Aqui, lei e evangelho são claramente entendidos como numa articulação paradoxal, uma implicação do Paradoxo Abso- luto, à medida que o desespero é estabelecido pelo cristianismo firmemente como uma posição e negado como uma posição na atuação da graça.

[…] a qualificação de que o pecado é uma posição implica em outro sentido a possibilidade de escândalo, o paradoxo. Ou seja, o paradoxo é a implícita consequência da doutrina da redenção. Antes de tudo, o cristianismo estabelece o pecado tão firmemente como uma posição que o entendimento humano nunca pode compreendê-lo; e então é o mesmo ensinamento cristão que novamente encarrega-se de eliminar essa posição de tal modo que o entendimento humano nunca possa compreendê-la […]. Mas o cristianismo, que foi o primeiro a descobrir os paradoxos, é tão paradoxal neste ponto quanto possível; ele parece estar trabalhando contra si mesmo ao estabelecer o pecado de modo tão seguro como uma posição que agora parece completamente impossível eliminá-lo novamente – e então é esse mesmo cristianismo que pela redenção quer eliminar o pecado tão completamente como se ele fosse lançado no fundo do mar (KIERKEGAARD, 2006, p. 212).

Sem a consciência do desespero, não há cura para ele. Mas só a consciência não basta. O problema do desespero é que finitude e infinitude, estes constituintes do ser humano, estão desarticulados. A própria finitude não pode, por si mesma, repor o infinito. A única solução, aqui, parece ser remanescente a Migalhas Filosóficas, ou seja, lidar com a aposta paradoxal de que o infinito se presentifique na finitude, o eterno paradoxalmente no tempo. Nesse sentido, não espanta que A Doença para a Morte introduza seu tema mostrando que a doença de Lázaro só não é para a morte porque Cristo existe e que, a sua continuação, ou seja, Prática no Cristianismo, constitua, com Migalhas Filosóficas, o par de obras cristológicas de Kierkegaard. Está posta a dialética de lei e evangelho.

Prática no Cristianismo (1850) – Embora não explicitamente, a figura de Cristo é central na totalidade de A Doença para a Morte6. Em Prática no Cristianismo, segunda obra de Anti-Climacus, Cristo ganha um destaque mais explícito como aquele que é simultaneamente modelo e redentor. O modelo apresenta a exigência do cristianismo, a lei, e o redentor apresenta o evangelho. Com a figura de Cristo, fica evidente que lei e evangelho se distinguem, mas não se separam, à medida que são constituintes de uma mesma pessoa. Prática no Cristianismo foi escrito em 1848 e publicado em 1850. Nesta época Kierkegaard já está preocupado com o cristianismo dinamarquês e com a confusão de seu tempo entre cristianismo e cultura, com um cristianismo sem exigência, sem lei ou, nos termos do próprio Anti-Climacus, em A Doença para a Morte, sem consciência do próprio desespero. Uma vez que a noção de lei implica na consciência do desespero, e uma vez que sem consciência do desespero não há salvação, não há construção de sentido, nesta época Kierkegaard sente que precisa enfatizar o aspecto da lei, da exigência, da idealidade do cristianismo. No prefácio de Prática no Cristianismo, assinado com as inicias de Kierkegaard, percebe-se esta ênfase na exigência, na lei, mas que, ainda assim, se articula com o evangelho e a graça:

Neste escrito, originado no ano de 1848, a exigência para ser cristão é forçada pelo autor pseudônimo a uma suprema idealidade. Entretanto a exigência deve ser de fato declarada, apresentada e escutada. Do ponto de vista cristão não deveria haver redução da exigência nem supressão – antes uma declaração pessoal e confissão. A exigência deveria ser ouvida; e eu entendo o que é dito como falado apenas para mim – de modo que eu possa aprender não apenas a valer-me da “graça”, mas valer-me dela em relação ao uso da “graça” (KIER- KEGAARD, 1991b, p. 7)7.

Diante da exigência do cristianismo, entendida como idealidade, o próprio Anti-climacus lança, então, a pergunta por como alguém poderia tornar-se cristão, sua resposta recorda o nome de Lutero e sua dialética:

Muito simplesmente e, se também o quiseres, bem luteranamente: apenas a consciência do pecado, se ouso dizê-lo, pode forçar alguém (de outro lado a graça é a força) a este horror. E nesse mesmo instante o especificamente cristão se transforma e é pura suavidade, graça, amor, misericórdia. (KIERKEGAARD, 1991b, p. 67).

Percebe-se que a dialética de lei e evangelho é mantida nesta obra, mas com uma ênfase na lei, no modelo. Esta ênfase será importante, como veremos adiante, para compensar uma distorção que Kierkegaard percebe em sua época e, neste sentido, tentar reestabelecer a dialética cristã.

LEI E EVANGELHO NA ESTRUTURA DA OBRA DE KIERKEGAARD
Mas se em obras particulares encontramos a dialética de lei e evangelho, deve-se dizer que esta dialética é igualmente estrutural para a totalidade da obra de Kierkegaard. Em Sobre Minha Obra como Autor, publicado em agosto 1851, Kier- kegaard reflete sobre sua posição e sua tática comunicativa na cristandade dinamarquesa. Nesse texto, percebe-se claramente como o autor concebe a sua obra no interior da dialética de lei e sua exigência infinita, de um lado, e o evangelho e a graça, de outro:

O cristianismo é tão suave quanto rigoroso, tão suave, ou seja, infinitamente suave. Quando a exigência infinita é escutada e afirmada, é escutada e afirmada em toda a sua infinitude, então a graça é oferecida, ou a própria graça se oferece, com relação à qual o indivíduo singular, cada um individualmente, pode recorrer, assim como eu mesmo faço; e então tudo funciona bem. Contudo, não é um exagero para a exigência do infinito, a exigência infinita, ser apresentada – infinitamente (isso também no interesse da própria graça). De outro modo, constitui um exagero apenas quando a exigência é apresentada sozinha e não se introduz a graça. (KIER- KEGAARD, 1998b, p. 16. Grifo no original).

A exigência infinita posta pela lei, portanto, precisa necessariamente estar articulada com a apresentação da graça, e é precisamente nesses termos que Kierkegaard define a estratégia de sua obra que se constituirá, como sabemos, de uma duplicidade de obras pseudônimas e obras assinadas numa dialética cuidadosamente articulada. Sobre isso, vale citar um conhecido trecho de Ponto de Vista “esta duplicidade […] é algo que o autor conhece melhor do que ninguém, ela é a qualificação dialética essencial de toda a obra e tem como consequência uma base mais profunda” (KIERKEGAARD, 1998b, p. 29). Sobre esta duplicidade com relação a Ou-ou, e os discursos publicados paralelamente, por exemplo, Kierkegaard afirma:

Embora Ou-ou absorvesse toda a atenção e ninguém reparasse nos Dois discursos edificantes, estes significavam, todavia, que o caráter edificante era exatamente o que deveria ser realçado, que o autor era um autor religioso que, por essa razão, ele próprio jamais escreveu algo de ordem estética, mas recorreu a pseudônimos para todas as obras estéticas, ao passo que os Dois discursos edificantes eram assinados pelo Magister Kierkegaard (KIERKE- GAARD, 1998b, p. 30-31).

Se as obras pseudônimas lembram o dito de Lichtenberg, “Tais obras são espelhos, se um macaco olhar para dentro, não será um apóstolo a olhar de volta” (citado em KIERKEGAARD, 1988, p. 8), de um modo geral elas revelam aquilo que se é e, nesse sentido, funcionam como lei. Mas aqui Kierkegaard ressignifica o modelo luterano e coloca as obras pseudônimas revelando não apenas o quão distante se está da moralidade da lei, mas mostra o quão distante estamos de nós mesmos e o quão iludidos eventualmente podemos estar quanto às questões fundamentais da existência. Esse distanciamento de si mesmo, e todas as consequências que daí advêm, podem ser sumarizados no conceito de desespero. Com isso, a dialética entre lei e evangelho vai sendo adaptada e ressignificada.

O que quero mostrar é que a dialética de lei e evangelho é utilizada e ressignificada por Kierkegaard em obras específicas, mas também na estrutura geral de sua obra. Para falar deste geral citei Sobre Minha Obra como Escritor e Ponto de Vista, como vimos. Mas não cito essas duas obras como uma autoridade, que seriam autoridade porque procedentes da pena de Kierkegaard. Contra isso, muitos poderiam contra-argumentar que tais obras são irônicas, e poderíamos entrar num debate infinito. Penso apenas que o modo como Kierkegaard interpreta sua obra neste ponto específico, faz sentido e mostra uma reinterpretação da dialética luterana de lei e evangelho.

CONCLUSÃO: KIERKEGAARD HERDA DE LUTERO E DO LUTERANISMO A DIALÉTICA DE LEI E EVANGELHO E CRITICA LUTERO E O LUTERANISMO EM NOME DESTA MESMA DIALÉTICA
Em 1849 Kierkegaard escreve algo bastante relevante para nossa discussão:

A tragédia da cristandade é claramente que removeu o elemento dialético da doutrina da fé em Lutero, de modo que se tornou um manto para o paganismo e o epicurismo. Nós esquecemos completamente que Lutero pediu fé em contraste com um ascetismo fantasticamente exagerado (Journals and Papers, 2484 [Pap.X1 A 213 a.d., 1849]).

Ou seja, a tragédia da cristandade é que removeu a dialética de lei e evangelho da doutrina da fé em Lutero. Este é o núcleo do problema ao qual Kierkegaard admitira sempre retornar. A doutrina de Lutero adaptou-se muito bem à situação pessoal dele e a seu contexto, mas foi tirada daquela situação e daquele contexto e feita paradigma. Nesta passagem mal-sucedida se coloca a tragédia da cristandade, tornada paganismo e epicurismo. Nessa perspectiva, Kierkegaard poderá afirmar, em 1850, que a ordem estabelecida tomou Lutero em vão e, ainda: “Lutero resgatou ‘o discipulado, [e] a imitação de Cristo’ de um mal entendido fantasioso – mas a era atual secularizou completamente Lutero, como se fosse isso o que Lutero quisesse dizer” (Journals and Papers, 2528 [Pap.X3 A 510 n.d., 1850]).

Quando olhamos para a dialética de lei e evangelho como aparece em Kierkegaard, em linhas gerais, fica claro que há aí uma forte herança luterana. Entretanto, se a questão de Lutero era muito contextual, com ênfase fantasiosa no ascetismo e na imitação de Cristo, contra o que o reformador precisou enfatizar a graça, Kierkegaard se dá conta claramente de a que sua situação também é bastante específica, um contexto que enfatiza o contrário do que o contexto de Lutero enfatizara e, por isso, pode ser chamada por Kierkegaard de epicurista, pagã ou como um tempo que enfatiza a “tranquilidade de espírito” (Journals and Papers, 2488 [Pap.X1 A 403 n.d., 1849]). Com isso, Kierkegaard poderá afirmar, nos Diários, que “O verdadeiro sucessor de Lutero deverá parecer-se exatamente com o oposto de Lutero, porque Lutero veio depois do excesso do ascetismo; ao passo que ele virá depois da terrível fraude que o entendimento de Lutero deu à luz.” (Journals and Papers, 2518 [Pap.X3 A 153 n.d., 1850]).

A fim de manter a dialética de lei e evangelho em seu equilíbrio e dando atenção a seu contexto, ao “nosso tempo”, como gosta de dizer, Kierkegaard irá por vezes enfatizar a lei, o modelo, como se vê especialmente em Prática no Cristianismo. Isso, de modo algum porque tenha perdido a dialética, mas, precisamente por estar bem consciente da dialética ele a modula à medida da necessidade de seu contexto. Justamente como herdeiro de Lutero ele percebe que precisa diferenciar-se dele. Nos Diários lemos que “Lutero está inteiramente certo naquilo que diz no prefácio de seus sermões sobre a distinção entre Cristo como modelo [Exem- pel] e como dádiva. Estou bastante consciente do fato de eu ter ido na direção de Cristo como modelo” (Journals and Papers, 2503 [Pap. X2 A 30 n.d., 1849 ]). Kierkegaard está bastante consciente da mudança que opera e de que precisa operá-la para manter a dialética de lei e evangelho na correta relação. Neste sentido, Kierkegaard é crítico de Lutero e do luteranismo, polêmico com relação a Lutero, justamente para manter a correta dialética que aprendera de Lutero e do luteranismo, o que se percebe claramente tanto em obras individuais como na estrutura total da obra.

Esta dialética corretamente estabelecida, será justamente o que enfatizará a concretude da existência, como vimos. No cristianismo assim compreendido, a verdade ou o sentido não devem ser procurados numa recordação do eterno, mas na temporalidade e na finitude, onde o eterno paradoxalmente se mostra e se oculta. A felicidade eterna só pode ser encontrada na história, no tempo, no corpo, na relação pessoal. Verdade é uma relação pessoal e não um conceito. Este é um entendimento de cristianismo que de modo algum é platonismo para o povo e gera uma ética religiosa que pode olhar de frente um moralismo francês, talvez por ter conhecido uma doença que é bem pior.

Por fim, desta relação podemos aprender ainda que Kierkegaard percebera com clareza o problema de Lutero ter pensado e escrito num contexto bem próprio e, depois, tirado desse contexto, ter sido feito paradigma. Parece um bom alerta para não tornarmos também Kierkegaard, agora, em um novo paradigma.

NOTAS
1 Para as citações de Søren Kierkegaard’s Journals and Papers, utilizarei o modo corrente de citar nos estudos de Kierkegaard, ou seja, indicando o número da entrada desta seleção dos diários. Para além disso, colocarei também, entre colchetes, a referência correspondente aos Søren Kierkegaards Papirer.

2 Hermann Deuser (2003) menciona que Kierkegaard teria feito uma leitura ligeira dos sermões de Lutero. As várias notas de Kierkegaard em seus diários comentando pontos de suas leituras dos sermões de Lutero indicam algo mais refletido do que aquilo que poderia se chamar de leitura ligeira. Ainda, em JP 2465, VIII1 A 642, de 22 de abril de 1848, Kierkegaard menciona a leitura de um sermão de Lutero “de acordo com o plano”, o que sugere uma ocupação mais cuidadosa pelo menos com os sermões de Lutero.

3 A construção no original dinamarquês “er slet ikke til”, vertida por “não existe mais”, permitiria também traduções mais fortes, como, “não existe mais, de jeito nenhum”, “acabou de vez” etc.

4 Cf. Gálatas 3.24.

5 É claro que, nesta interpretação, surgem uma série de problemas com relação à doutrina do pecado original, o que constitui uma outra discussão. Minha ênfase neste ponto com relação a O Conceito de Angústia diz respeito apenas à responsabilidade pessoal com relação ao pecado. Para maiores detalhes com relação a questões teológicas consequentes da interpretação de O Conceito de Angústia, veja o primeiro capítulo de minha tese (ROOS, 2007).

6 Poder-se-ia afirmar que a figura de Cristo é central apenas para a segunda parte de A Doença para a Morte: “Desespero é pecado”. Entretanto, uma dissociação das partes da obra elimina a dialética na qual ela é constituída e, consequentemente, seu sentido profundo, qual seja, diagnosticar tanto o desespero enquanto doença do ser humano quanto a graça como cura apresentada em termos simbólicos no evangelho. Na dialética de lei e evangelho ambas as partes são inseparáveis.

7 O livro Prática no Cristianismo é dividido em três partes. A segunda e a terceira partes iniciam remetendo a esse mesmo prefácio apresentado no início da obra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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