UM SERMÃO SOBRE A INDULGÊNCIA E A GRAÇA


Categoria: Martinho Lutero
Imagem: Martinho Lutero - Igreja Luterana no Instagram
Publicado: 30 de Novembro de 2013, Sábado, 17h50

1. Em primeiro lugar, cumpre que saibam que vários novos mestres, tais como o mestre das Sentenças[2], S. Tomás[3] e seus seguidores, atribuem três partes à Penitência, quais sejam: a contrição, a confissão e a satisfação. Esta distinção, em seu conceito, dificilmente ou mesmo de forma alguma se acha fundamentada na Sagrada Escritura e nos antigos santos mestres cristãos. Mesmo assim queremos admiti-la por ora ou falar ou modo deles.

2. Dizem eles que a indulgência não elimina a primeira ou a segunda parte – a contrição ou a confissão -, mas sim a terceira, a satisfação.

3. A satisfação também é subdividida em três partes: orar, jejuar, dar esmola, e isto da seguinte forma: “orar” compreende todas as obras próprias da alma, como ler, meditar, ouvir a palavra de Deus, pregar, ensinar e similares; “jejuar” inclui todas as obras de mortificação da carne, como vigílias, trabalho, leito duro, vestes grosseiras, etc.; “dar esmolas” abrange todas as obras de amor e misericórdia para com o próximo.

4. Para todos eles não resta dúvida que a indulgência elimina as obras da satisfação, que devemos fazer ou que nos foram impostas por causa do pecado. Se ela de fato eliminasse todas essas obras, nada de bom restaria que pudéssemos fazer.

5. Para muitos foi uma questão importante – e ainda não resolvida – se a indulgência elimina mais do que essas boas obras impostas, ou seja, se ela também elimina a pena que a justiça divina exige pelos pecados.

6. Desta vez não questiono a opinião deles. Afirmo, entretanto, que não se pode provar, a partir da Escritura, que a justiça divina deseja ou exige do pecador qualquer pena ou satisfação, mas sim unicamente sua contrição ou conversão sincera e verdadeira, com o propósito de, doravante, carregar a cruz de Cristo e praticar as obras acima mencionadas (mesmo que não estejam prescritas por ninguém). Pois assim diz o Senhor através de Ezequiel: “Se o pecador se converter e fizer o que é reto, não mais me lembrarei do seu pecado.” (Ez 18.21s.; 33.14-16.). Da mesma forma ele mesmo absolveu a todos estes: Maria Madalena[4], o paralítico[5], a mulher adúltera[6], etc. Gostaria de ouvir quem haveria de provar outra coisa, não levando em conta que alguns doutores julgaram poder fazê-lo.

7. O que se encontra[7] é isto: Deus castiga alguns segundo a sua justiça ou os leva à contrição através de penas, como em Sl 88(89).31-33: “Quando seus filhos pecarem, punirei com a vara o seu pecado, mas minha misericórdia não retirarei deles.” Porém a dispensa destas penas não está na mão de ninguém a não ser de Deus somente; sim, ele não quer remiti-las, mas promete que as imporá.

8. Por isso não se pode dar nome algum à pena imaginária, tampouco sabe alguém qual seria ela, visto que não é este castigo nem as boas obras acima mencionadas.

9. Afirmo que, mesmo que a Igreja cristã decidisse e declarasse hoje que a indulgência elimina mais do que as obras de satisfação, ainda assim seria mil vezes melhor que cristão algum comprasse ou desejasse a indulgência, mas preferivelmente praticasse as obras e sofresse a pena. Pois a indulgência não é nem pode tornar-se outra coisa do que uma dispensa de boas obras e de benéficas penas, que seria melhor fossem preferidas do que abandonadas, ainda que alguns novos pregadores tenham descoberto dois tipos de penas: medicativas e satisfacotrias[8], isto é, umas para o aperfeiçoamento, outras para a satisfação. Nós, porém, temos mais liberdade para desprezar (Deus seja louvado!) essa espécie de conversa do que eles têm para inventá-la. Porque toda pena, sim, tudo o que Deus impõe é útil e contribui para o melhoramento do cristão.

10. De nada vale dizer que as penas e as obras seriam demasiadas, que a pessoa não conseguiria realizá-las por causa da brevidade de sua vida e que, por isso, precisaria de indulgência. Respondo que isso não tem fundamento e é pura invenção. Porque Deus e a santa Igreja a ninguém impõem mais do que lhe é possível carregar, como também o diz Paulo: Deus não permite que alguém seja tentado acima do que pode carregar[9]. É grande vergonha para a cristandade ser acusada de impor mais do que podemos carregar.

11. Mesmo que ainda vigorassem as penitências fixadas no direito canônico, de impor sete anos de penitência para cada pecado mortal, a cristandade deveria deixar as mesmas de lado e nada mais impor acima do que cada um pode suportar. Como atualmente não mais vigoram estas determinações, tanto menos razão há para cuidar que se imponha mais do que cada um tem condições de suportar bem.

12. Diz-se muito bem que o pecador deve ser remetido ao purgatório ou a indulgência com a pena restante, mas dizem ainda outras coisas sem fundamento e prova.

13. Incorre em grave erro quem pretende fazer satisfação por seus pecados, pois Deus os perdoa a toda hora grátis, por graça inestimável, e nada deseja em troca senão que doravante se leve uma vida boa. A cristandade, esta sim, faz exigências; portanto, ela também pode e deve dispensar delas e não impor nada pesado ou insuportável.

14. A indulgência é permitida por causa dos cristãos imperfeitos e preguiçosos, que não querem exercitar-se resolutamente em boas obras ou não desejam sofrer. Pois a indulgência não promove o melhoramento de ninguém, e sim tolera e permite sua imperfeição. Por esta razão não se deve falar contra a indulgência, mas também não se deve recomendá-la a ninguém.

15. Agiria de maneira mais segura e melhor quem desse algo para o edificio de S. Pedro, ou o que mais é citado, por puro amor a Deus, ao invés de aceitar indulgências em troca. Isso porque é perigoso fazer semelhante dádiva por causa da indulgência e não por causa de Deus.

16. Muito melhor é a obra feita em benefício de um necessitado do que dar para dita construção; também é muito melhor do que a indulgência concedida em troca. Pois, como dissemos: melhor é uma boa obra realizada do que muitas dispensas. Indulgência, porém, é dispensa de muitas boas obras, ou, senão, nada é dispensado.

Sim, e para que os ensine corretamente, atentem bem: antes de todas as coisas (sem preocupação com o edifício de São Pedro nem com a indulgência) deves dar ao teu próximo pobre, se queres dar alguma coisa. Mas se chegar o momento em que, em tua cidade, não há mais ninguém que necessite de ajuda (o que jamais será o caso, se Deus quiser), então deves ofertar, se quiseres, às igrejas, altares, ornamentos, cálice, em tua cidade. E quando isso também não mais for necessário, só então – se quiseres – podes contribuir para o edifício de S. Pedro ou para alguma outra coisa. Mesmo assim, também não deves fazê-lo por causa da indulgência. Pois São Paulo diz: “Quem não faz o bem sequer aos de sua própria casa não é cristão e é pior do que o descrente.” (1 Tm 5.8). E podes crer: quem te disser outra coisa está te seduzindo ou procura tua alma em teu bolso; e se encontrasse aí alguns centavos, isso lhe seria preferível a todas as almas.

Se agora dizes: “Então nunca mais comprarei indulgências“, replico: isso eu já disse acima, que minha vontade, desejo, pedido e conselho é que ninguém compre indulgência. Deixa os cristãos preguiçosos e sonolentos comprarem indulgência. Tu, porém, segue teu caminho!

17. A indulgência não é nem prescrita nem recomendada, mas está entre o número de coisas permitidas e autorizadas. Por isso ela não é uma obra de obediência nem é meritória, e sim uma fuga da obediência. Por isso, embora não se deva impedir ninguém de comprá-la, dever-se-iam afastar dela todos os cristãos, estimulando-os e fortalecendo-os para as obras e penas que são aí[10] remitidas.

18. Se as almas são tiradas do purgatório através da indulgência, isso eu não sei e também ainda não acredito, mesmo que alguns novos doutores o afirmem. Mas não podem prová-lo, e também a Igreja ainda não decidiu sobre o assunto. Por isso, para maior segurança, é muito melhor que ores e atues por elas, pois isto está mais comprovado e certo.

19. Sobre esses pontos não tenho dúvida alguma, pois estão suficientemente fundados na Escritura. Por isso também vocês não devem ter dúvida alguma, e deixem os doutores escolásticos[11] serem escolásticos. Todos eles não são suficientes, com suas opiniões, para fundamentar um sermão.

20. Ainda que alguns, para os quais esta verdade dá grande prejuízo material, agora me chamem de herege, não dou muita importância a semelhante palavrório, pois quem está a fazê-lo são alguns cérebros tenebrosos que nunca cheiraram a Bíblia, nunca leram os mestres cristãos, nunca entenderam os seus próprios professores e já estão quase a decompor-se em suas opiniões esburacadas e esfarrapadas. Pois se os tivessem entendido, saberiam que não devem difamar a ninguém sem ouví-lo e convencê-lo do seu erro. Que Deus dê a eles e a nós um entendimento correto! Amém.

[1] Eynn Sermon von dem Ablass und gnade durch den wirdigenn doctornn Martinum Luther Augustiner tzu Wittenbergk, WA 1,243-6. Tradução de Walter O. Schlupp.

[2] Trata-se de Pedro Lombardo (ca. 1100-1160). Nascido em Novara, na Lombardia, e falecido em Paris, estudou, ao que tudo indica, em Bolonha e, posteriormente, em Reims e em Paris. Em Paris lecionou na escola da Catedral de Notre Dame. Em 1159 foi eleito bispo de Paris. Entre suas obras encontramos comentários aos Salmos e às epístolas paulinas, 29 sermões e os Sententiarum libri IV. As Sentenças apresentam um resumo sistemático dos conhecimentos teológicos da época. Trata-se, basicamente, de uma compilação (Pedro usa textos de Hugo e de São Vitor, Walter de Mortagne e Pedro Abelardo), que teve grande aceitação nas escolas, servindo de modelo para outras obras similares. Desde o séc. XIII, passou a ser livro-texto para o ensino teológico. Quanto à doutrina escolástica da Penitência, cf. a obra de Lutero Do cativeiro babilônico da Igreja; um prefúdio, no v. 2 desta coleção.

[3] Tomás de Aquino (1225-1274). Dominicano, foi professor de Teologia em Paris, Roma e Nápoles. Aprofundando o conhecimento de Aristóteles e dos pais da Igreja, Tomás criou um dos mais impressionantes sistemas da escolástica.

[4] Cf. Lc 8.2.

[5] Cf. Lc 5.20.

[6] Cf. Jo 8.11.

[7] Sc. na Bíblia.

[8] As penas medicativas são impostas para a santificação e reflexão; as satisfatórias objetivam a satisfação.

[9] Cf. 1 Co 10.13.

[10]. Sc. na indulgência.

[11] Cf. o juízo emitido por Lutero a respeito dos doutores escolásticos nas teses 18 e 19 do Debate de Heidelberg, p. 49 deste volume.

 

Fonte: Martinho Lutero, Obras Selecionadas - Os Primórdios Escritos de 1517 a 1519. Volume I. Comissão Interluterana de Literatura São Leopoldo. Co-Editoras: Editora Sinodal (São Leopoldo), Concórdia Editora (Porto Alegre), Editora da Ulbra (Canoas). 2004

 


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