AS 95 TESES DE LUTERO COMENTADAS [PARTE 2]: XX ao XXXIX


Categoria: As 95 Teses de Lutero Comentadas
Imagem: Martinho Lutero pregando suas 95 teses na porta da Igreja de Wittenberg - The Gospel Coalition
Publicado: 07 de Novembro de 2021, Domingo, 14h51

TESE XX
Portanto, sob remissão plena de todas as penas o papa não entende simplesmente todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.


Esta tese eu debato, mas ainda não a defendo com pertinácia. Minhas razões são:

  1. A primeira [provém] do que foi dito em relação à tese 5: só a pena canônica é remitida pelo poder das chaves. Por isso, esta tese é um corolário daquela; negada aquela, é negada também esta.
  2. A segunda razão [é derivada] do primeiro estilo do pontífice, que diz: “Relaxamos misericordiosamente as penitências impostas.” Logo, não relaxa as não impostas por ele ou pelos cânones. Creio que aqui não devemos nos preocupar com a invencionice arbitrária de algumas pessoas que dizem: Quando o pontífice não acrescenta esta cláusula a respeito das penitências impostas, então deve-se entender simplesmente a remissão de todas as penas. Eu diria: se ela não é acrescentada, subentende-se, mesmo assim, que é acrescentada como cláusula nescessária e pertencente à essência do estilo; ou eles que provem com algum texto o que dizem.
  3. Chego a um argumento costumeiro, mas que é o mais forte de todos, e pergunto: por meio de que autores pretendem eles provar que também outras penas do que as canônicas são removidas pelas chaves? Apresentam-me Antonino, Pedro de Palude, Agostinho de Ancona, Capreolo. Depois também o sumista Ângelo refere-se a seu Francisco Maronis, que levou a compra de indulgências a tal ponto, que ousou chamá-la de meritória, se agrada a Cristo. Como se, de fato, essas pessoas fossem de tal espécie e grandeza, que qualquer coisa que pensaram devesse ser imediatamente incluída entre os artigos de fé. Na verdade, devem ser mais repreendidos os que, para nossa ignomínia e para injúria daqueles, alegam como afirmações as coisas que aqueles, por causa de sua piedosa intenção, [apenas] opinaram, não dando absolutamente nenhuma atenção àquele fiel conselho do apóstolo: “Provai todas as coisas, retende o que é bom.” (1Ts 5.21).

[..]

  1. A quarta razão é a seguinte: no capítulo cum ex eo, li. V. de pe. et re., se diz: “Pelas indulgências a satisfação penitencial é enfraquecida.” Embora o papa diga essa palavra mais por dor do que por graça, os canonistas a entendem como reza. Logo, se a satisfação penitencial é enfraquecida, é evidente que unicamente a pena canônica é remitida, já que a satisfação penitencial não é outra coisa do que a terceira parte da Penitência eclesiástica e sacramental. Pois a satisfação evangélica em nada diz respeito à Igreja, como expusemos acima.

Se alguém me objetar que o papa não nega que também outras penas perdem sua força, mas que apenas afirma e que não fala de maneira exclusiva quando diz: “A satisfação penitencial perde sua força”, respondo: prova, então, que ele também relaxa outras e que não fala de maneira exclusiva. Como não o fazes, eu provo que ele fala de maneira exclusiva através do capítulo Cum ex eo, supracitado, onde diz que aos questores de esmolas não é permitido propor ao povo nada além do que está contido em suas cartas. Ora, nada está contido em qualquer carta apostólica além de remissões da satisfação sacramental, como diz o próprio papa: A satisfação penitencial perde sua força por meio de indulgências indiscriminadas e supérfluas. Mais ainda: com essa palavra o papa restringe as indulgências mais rigidamente ainda, pois se só as indulgências supérfluas enfraquecem a satisfação sacramental, então as moderadas e legítimas não enfraquecem nem mesmo a própria satisfação penitencial, muito menos qualquer outras penas. Mas essas coisas não pertencem à minha jurisdição ou profissão. Os canonistas que se ocupem disso.


TESE XXI
Erram, portanto, os comissários de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa.


Esta tese eu afirmo inteiramente e demonstro.
Pois resta pelo menos a terceira pena, isto é, a evangélica, sim, também a quinta, a saber, morte e doença, e em minutos aquela que é a maior de todas, a saber, o horror da morte, tremor da consciência, fraqueza de fé, pusilanimidade do espírito. Comparar estas penas com as remidas por indulgências é como comparar uma coisa com sua sombra. Contudo, também não é intenção do papa que eles fabulem tão frívola e impunemente, como fica claro a partir do capítulo Cum ex eo.

Se dissessem: “Também nós não dizemos que essas penas são suprimidas pelas indulgências”, respondo: por que, então, não instruis o povo para que este saiba que penas tu remites, mas gritas que são remitidas absolutamente todas as penas que uma pessoa deve pagar perante Deus e a Igreja por seus pecados? Como é que o povo vai compreender por si mesmo se falas de modo tão obscuro e liberal?


TESE XXII
Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida.


Não defendo esta tese mais extensamente do que a oitava, da qual flui como corolário, pois os cânones penitenciais não se estendem à outra vida. Porque toda pena temporal é transformada na pena da morte; mais ainda: por causa da pena da morte, ela é suprimida e deve ser suprimida. Sim, imagina (para argumentar mais extensamente) que a Igreja Romana fosse tal qual ainda era na época do B. Gregório, quando não estava sobre outras Igrejas, pelo menos não sobre a da Grécia. [Neste caso,] claro está que as penas canônicas não obrigavam os gregos, assim como hoje não obrigam os cristãos não sujeitos ao papa, como na Turquia, Tartária e Livônia. Portanto, eles não têm necessidade de nenhuma dessas indulgências, e sim somente os que estão colocados no orbe da Igreja Romana. Logo, se elas não obrigam estes vivos, muito menos os mortos, que não estão sob Igreja alguma.


TESE XXIII
Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele certamente só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.


Entendo esta tese com referência a penas de todo gênero e assim a defendo. Pois, como foi suficientemente dito, não há dúvida de que a remissão da satisfação penitencial pode ser dada a qualquer pessoa. Ou melhor: corrijo esta tese e digo que a remissão de todas as penas não pode ser dada absolutamente a ninguém, seja aos mais perfeitos, seja aos imperfeitos. E provo: pois mesmo que Deus não imponha aos mais perfeitos os flagelos ou a quarta espécie de penas, pelo menos não a todos e sempre, permanece, não obstante, a terceira, a saber, a evangélica, sim, também a quarta, isto é, a morte e as penas que estão relacionadas com a morte. Pois mesmo que Deus pudesse tornar todos perfeitos na graça, talvez sem penas, ele não decidiu fazê-lo; decidiu, isto sim, tornar todos conformes à imagem de seu Filho, isto é, à cruz. Mas que necessidade há de tantas palavras? Por mais magnificamente que se exalte a remissão das penas, o que, pergunto eu, se consegue junto àquela pessoa que tem ante os olhos a morte, bem como o temor da morte e do juízo? Se prega a esta pessoa toda outra remissão, porém não se concede que estas sejam remitidas, não sei se traz qualquer consolo. Portanto, atende ao horror da morte e do inferno e, querendo ou não, absolutamente não te preocuparás com remissões de penas. Assim, as indulgências serão vilificadas não por nosso esforço, mas por uma necessidade objetiva, já que não suprimem o temor da morte.


TESE XXIV
Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.


Também esta tese eu afirmo e sei que assim acontece. Pois eu mesmo ouvi muitas pessoas dizerem que não entenderam de outra maneira senão que, através das indulgências, saem voando sem qualquer pena. Não é de admirar, pois aqueles escrevem, lêem, proclamam que sairá voando imediatamente quem adquirir indulgências e morrer antes de cair de novo em pecado. Eles dizem tudo isso como se não existissem senão pecados atuais, e como se o fomes remanescente não fosse nenhuma impureza, nenhum impedimento, nenhum meio que retardasse o ingresso no reino. Pois, a menos que ele seja curado, é impossível entrar no céu, mesmo que não haja pecado atual. É que nada inquinado entrará. Em conseqüência, o próprio horror da morte, por ser um vício do fomes e um pecado, mesmo por si só impede a entrada no reino. Porque quem não morre de bom grado não obedece ao chamado de Deus senão contra a vontade, e, nisto, não faz a vontade de Deus na exata medida em que morre contra a vontade, e peca na exata medida em que não obedece à vontade de Deus. Por isso é raríssimo quem, depois de todas as indulgências, não peque ainda na morte, exceto os que desejam ser livrados e chamam a morte. Assim sendo, para não discordar deles inteiramente, digo que quem estiver perfeitamente contrito, isto é, odiar a si mesmo e sua vida e amar sumamente a morte, sairá voando imediatamente, tendo sido remitidas suas penas. Mas trata de ver quantos serão estes.


TESE XXV
O mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura têm em sua diocese e paróquia em particular.


Esta é a blasfêmia que me tornou digno de mil mortes, a saber, conforme o juízo dos questores, para não dizer usurários. Mas antes de demonstrar esta tese quero falar sobre meu propósito. Em primeiro lugar, digo mais uma vez que aqui não debato no que diz respeito à opinião que viso através destas palavras (pois esta afirmo com constância, porque toda a Igreja a sustenta), mas no que diz respeito às palavras. Depois, também peço aos meus adversários que suportem minha dor, pela qual sou supliciado ao ouvir que na Igreja de Cristo são pregadas coisas que nunca foram escritas e estatuídas. Pois lemos que outrora pareceu aos santos pais perigosíssimo que seja ensinada qualquer coisa além da prescrição celeste, como diz Hilário. E o santo que interrompeu a fala de alguém que tão-somente usara uma palavra grega equivocadamente, dizendo “toma a tua cama e vai” ao invés de “toma o teu catre ou leito e vai”, repreendendo-o numa coisa que em nada mudara o sentido. Creio que eles me devem justissimamente vênia por essa minha dor, visto que somos obrigados, sem jamais termos sido solicitados ou advertidos, a tolerar suas presunções, sendo que lhes apraz pregar as coisas que nos cruciam quando as ouvimos.

Não digo ou faço isso porque seja impudentemente arrogante ao ponto de crer que eu deva ser contado entre os doutos da santa Igreja, muito menos entre aqueles a quem compete estatuir ou rejeitar essas coisas. Oxalá eu merecesse algum dia tornar-me o último membro da Igreja! Antes, sustento o seguinte: embora na Igreja haja homens doutíssimos e igualmente santíssimos, tal é a infelicidade de nossa época, que mesmo tão grandes homens não podem socorrer a Igreja. Pois o que a reudição e o zelo piedoso conseguem hoje em dia foi suficientemente provado pelo infeliz fim dos doutíssimos e santíssimos homens que, sob Júlio II, esforçaram-se por reformar a Igreja através de um concílio instituído para esta necessidade. Existem, aqui e ali, também outros ótimos e eruditos pontífices que conheço, porém o exemplo de poucos impõe o silêncio a muitos. Pois o tempo é péssimo (como diz o profeta Amós); por isso, o prudente guardará silêncio naquele tempo. Por fim, temos hoje um ótimo pontífice, Leão X, cuja integridade e erudição são uma delícia para todos os bons ouvidos. Mas o que pode esse homem amabilíssimo fazer sozinho em meio a tanta confusão das coisas? Ele certamente merecia ser pontífice em tempos melhores ou que houvesse tempos melhores em seu pontificado. Em nosso tempo não merecemos ter por pontífice senão gente como Júlio II, Alexandre VI ou outros atrozes Mezêncios inventados pelos poetas. Pois dos bons hoje em dia até a própria Roma se ri, sim, Roma mais do que todas. Pois em que parte do orbe cristão zombam mais livremente até dos sumos pontífices do que naquela verdadeira Babilônia que é Roma? Mas chega disto. Visto que, além de inúmeras pessoas particulares, a Igreja tem pessoas doutíssimas também em suas cátedras, se quisesse ser considerado prudente, a exemplo delas, também eu me calaria. Mas é preferível que a verdade seja dita mesmo por estultos, por crianças, por ébrios, do que que ela seja totalmente silenciada, para que a confiança dos mais doutos e dos sábios fique mais animosa ao ouvirem a nós, povo rude, finalmente clamar por causa da excessiva indignidade da coisa, assim como diz Cristo: “Se eles se calarem, as pedras clamarão.” [Lc 19.40]

[…]


TESE XXVI
O papa faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem), mas por meio de intercessão.


Não creio que seja necessário declarar mais uma vez o que debato ou que afirmo. Todavia, como em nosso tempo os inquisidores da depravação herética são tão zelosos que procuram obrigar com violência os católicos mais cristãos a se tornarem hereges, será oportuno dar uma explicação sobre cada sílaba. Pois não me é fácil ver que outra coisa fizeram João Pico de Mirândola, Laurêncio Valla, Pedro de Ravena, João Vesália e, ultimamente, por estes dias, João Reuchlin e Jacó de Etaples – que, contra a sua vontade e tendo uma boa opinião, foram obrigados a ter uma má opinião – senão que talvez tenham deixado de dar uma explicação sobre cada sílaba (como disse). Tamanha é, hoje em dia, a tirania de crianças e efeminados na Igreja. Assim pois, declaro mais uma vez que farei duas coisas nesta tese: primeiramente, debater a respeito do poder das chaves sobre o purgatório e provar a [opinião] negativa, até que alguém outro prove melhor a afirmativa; em segundo lugar, inquirir aquele modo da intercessão.

Provo o primeiro ponto da seguinte maneira:

  1. Em primeiro lugar, através daquele difundido argumento do Ostiense, a saber: se as chaves se estendessem até o purgatório, poderiam esvaziá-lo, e o papa seria cruel por não fazê-lo.

Eles refutam este argumento da seguinte forma: o papa pode, mas não deve esvaziá-lo, a menos que haja uma causa justa e razoável, para não agir inconsideradamente contra a justiça divina. Creio que eles dificilmente apresentariam esta solução fria e negligente a menos que não advertissem no que falam ou julgassem que falam entre bezerros marinhos profundamente adormecidos. Assim acontece que de um absurdo se seguem vários. E é como diz o ditado: para parecer verdade, uma mentira precisa de sete outras.

Assim sendo, o argumento dificilmente poderia ser reforçado com mais vigor do que através de tal refutação. Pois perguntamos: qual será enfim o nome dessa causa razoável? Ora, consta que se dão indulgências por causa de uma guerra contra os descrentes, de uma construção sacra ou de alguma outra necessidade comum desta vida. No entanto, nenhuma dessas razões é tão importante, que o amor não seja incomparavelmente mais importante, mais justo e mais razoável. Se, pois, a justiça divina não é ofendida caso – para proteger os corpos dos fiéis e seus bens, ou por causa de construções inanimadas, ou por causa de um brevíssimo uso desta vida corruptível – se remitem tantos quantos quiser (mesmo que se incluam todos neste número, de modo que, assim, o purgatório também seja esvaziado), quanto mais ela não é ofendida se, por causa do santo amor, são redimidos todos. A menos que, por acaso, a justiça divina seja tão iníqua, ou talvez melancólica, que seja mais favorável ao amor demonstrado para com o corpo e o dinheiro dos viventes do que ao amor demonstrado para com as almas tão carentes, principalmente tendo em vista que socorrer as almas é uma coisa tão importante, que os fiéis devem preferir servir aos turcos e ser mortos corporalmente a que as almas não sejam redimidas. Se, pois, [o papa] redime um número infinito [de almas] e, talvez, por isso mesmo, todas, por causa daquilo que é menor, por que não também por causa daquilo que é o máximo, isto é, por causa do amor? Aqui, porém, quero aconselhar a eles, já que se meteram num aperto, que digam que não pode haver nenhuma causa razoável, para assim escaparem com segurança dessa objeção. Assim, se o papa pudesse no que diz respeito a ele, contudo não pode no que diz respeito à causa, pois não pode haver tal causa.

[…]


TESE XXVII
Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando.


Pregam doutrina humana, isto é, vaidade e mentiras, segundo aquele dito: “Todo ser humano é mentiroso” [Sl 116.11]; e mais uma vez: “Todo ser humano vivo é vaidade.” [Sl 39.5]. Em minha opinião, esta proposição não necessita de prova. Contudo, ela é provada pela tese seguinte, pois a intercessão da Igreja é eficaz conforme a vontade de Deus e o mérito da alma. Por isso, mesmo que fosse verdadeira a opinião deles de que elas são proveitosas pelo modo da intercessão, não se segue que saem voando imediatamente.

  1. Não é a intercessão que liberta, mas o entendimento e a acolhida da intercessão, pois elas são libertadas não pela oração da Igreja, mas pela obra de Deus.
  2. Por natureza Deus age de tal forma que ouve depressa, porém tarda em dar, como se evidencia nas orações e doutrinas de todos os santos, para pôr à prova sua perseverança. Por isso, há uma grande distância entre a intercessão e seu atendimento e cumprimento.
  3. Isto mesmo é dito de um modo novo, sem qualquer abonação, contra a proibição do cânone de que não deve ser dito nada além do que está contido nas cartas. Por conseguinte, eles não falam o que é de Deus e da Igreja, isto é, a verdade, mas suas próprias [idéias], isto é, mentiras.
  4. Não há diferença entre quem fala algo falso cientemente e quem afirma ser certo o que não sabe ser certo. Pois assim também quem diz a verdade mente às vezes. Ora, eles sabem que as coisas agora ditas lhes são incertas; ainda assim, asseguram que são certas, como se fossem evangelhos. Com efeito, não podem provar que são certas por nenhuma passagem da Escritura ou argumento racional.
  5. Então a intercessão seria melhor para o serviço de outrem – e ainda por acidente – do que para seu próprio serviço, porque não aproveita tanto a quem a faz quanto ao outro por quem é feita; sim, isto é peripatético, razão pela qual passo por cima disso, principalmente tendo em vista que eles ousaram admitir que a intercessão não aproveita a quem a faz, mas à alma [pela qual é feita], etc. Também eu poderia ridicularizar e zombar destas fábulas, assim como eles zombam da verdade por meio delas, mas desisto, para não parecer que proponho mais um dogma do que um problema.

TESE XXVIII
Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.


É estranho que eles não pregam o salubérrimo Evangelho de Cristo com tanto esforço e berreiro. O que torna o negócio suspeito é o fato de que parecem apreciar mais o lucro do que a piedade, a menos que porventura possam ser desculpados justissimamente pelo fato de ignorarem o Evangelho de Cristo. Portanto, como as indulgências não têm piedade, nem mérito, nem mandamento, mas apenas uma certa licença, mesmo que a obra pela qual são compradas seja piedosa, em verdade parece que, por elas, se aumenta mais o lucro do que a piedade, sendo tratadas tão amplamente e sozinhas, que o Evangelho, como algo mais vil, dificilmente é recitado.

[…]


TESE XXIX
E quem é que sabe se todas as almas querem ser resgatadas do purgatório? Diz-se que este não foi o caso com S. Severino e S. Pascoal.


Não li um escrito fidedigno a respeito dos dois, porém ouvi contar que eles poderiam ter sido libertos por seus méritos, se tivessem querido ser glorificados em grau menor. Por isso, preferiram suportar a diminuir a glória da visão. Mas nessas coisas cada um creia o que quiser, para mim tanto faz. Pois não neguei que as almas no purgatório pagam também outras penas do que as acima mencionadas. Eu quis, isto sim, [dizer] que, mesmo que essas penas fossem remitidas, elas não sairiam voando se também não fossem perfeitamente curadas na graça. Entretanto, poderia acontecer que, por excessivo amor a Deus, algumas não quisessem ser redimidas. A partir disso se torna verossímil que Paulo e Moisés puderam querer ser anátema e separados de Deus para sempre. Se estes estavam dispostos a fazer isso em vida, parece que não se deve negar que a mesma coisa possa ser feita por mortos. A respeito disso se encontra, nos sermões de Tauler, o exemplo de uma virgem que assim procedeu.


TESE XXX
Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissão.


Digo isto segundo a opinião daqueles que querem que a contrição seja necessária para a remissão das penas e não vêem quão muitíssimo incertas tornam todas as coisas. A tese é suficientemente evidente, pois todos defendem a primeira parte; ora, a segunda segue-se necessariamente. No entanto, em minha opinião pode haver uma certa remissão das penas – a saber, das canônicas -, mesmo que alguém não fosse digno nem estivesse contrito. Não é a contrição, muito menos a certeza da contrição, que é exigida para a remissão das penas, porque a remissão subsiste mesmo que seja concedida a penas imaginadas, visto estar unicamente no poder do papa. Contudo, se eles – como também foi dito acima – querem que sejam remitidas outras penas do que [as impostas por] crimes – a saber, [por] quaisquer pecados mortais -, então, magnificando excessivamente as indulgências, fazem com que elas sejam nulas. Pois, se são incertas, as indulgências não são indulgências. Porém elas são incertas e se apóiam sobre a consciência da pessoa a ser absolvida, não sobre o poder das chaves, mas principalmente se apóiam também sobre a contrição por todos os pecados mortais, e não apenas pelos crimes manifestos, já que ninguém está certo de estar sem pecado mortal. Mas a pessoa pode estar certa de estar sem crimes, isto é, sem um pecado pelo qual possa ser acusada perante a Igreja, como dissemos acima. Por isso, nego que essa tese seja verdadeira, se falo de acordo com minha maneira de pensar. Todavia, eu a propus para que eles vejam a absurdidade de sua jactância, com a qual engrandecem as indulgências.


TESE XXXI
Tão raro como quem é penitente de verdade é quem adquire autenticamente as indulgências, ou seja, é raríssimo.


Falo novamente segundo o modo de pensar deles, para que vejam a temeridade, sim, a contradição de sua pregação licenciosa. Enquanto clamam que as indulgências aproveitam a tantas pessoas e, não obstantes, confessam que são poucas as que trilham o caminho estreito, eles nem mesmo enrubescem e não prestam atenção no que falam. Mas não admira. É que eles não assumiram o ofício de ensinar a contrição e o caminho estreito. Assim pois, digo minha opinião: embora poucos sejam contritos, muitos, sim, todos em toda a Igreja poderiam estar livres das penas dos cânones através da abolição dos cânones – como, aliás, agora em verdade estão.


TESE XXXII
Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgência.


Esta tese eu mantenho e demonstro:
Assim diz Jr 17.5: “Maldito é quem deposita sua esperança no ser humano e considera a carne como seu braço.” Pois não temos qualquer confiança de salvação senão unicamente Jesus Cristo e, “abaixo do céu não é dado nenhum outro nome pelo qual importa que sejamos salvos”, At 15. Fora, portanto, com a confiança em cartas mortas, no nome “indulgências”, no nome “intercessão”! Em segundo lugar, como disse, as cartas e indulgências nada conferem de salvação. Elas apenas removem as penas, e tão-somente as canônicas, e nem mesmo todas as canônicas. Oxalá aqui a terra e toda a sua plenitude gemessem comigo e chorassem por causa da sedução do povo cristão que, em toda parte, não entende das indulgências de outra forma senão como sendo salutares e úteis para o fruto do Espírito! Também não admira, já que a verdade manifesta da coisa não lhe é exposta. Infelizes dos cristãos, que, no que diz respeito à salvação, não podem confiar nem em seus méritos nem em sua boa consciência! Ensinam-lhes a confiar num papel escrito e encerado. Por que eu não haveria de falar nesses termos? O que mais é dado ali, pergunto eu? Não é contrição, não é fé, não é graça, mas tão-somente [a remissão de] penas do ser humano externo, estabelecidas pelos cânones. E para digressionar um pouco: eu mesmo ouvi muitas pessoas que, tendo dado dinheiro e comprado cartas, nelas colocaram toda a sua confiança. Pois ou elas assim ouviram (como diziam) ou (como creio por causa da honra) entenderam que os pregadores de indulgências assim ensinam.

[…]


TESE XXXIII
Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é reconciliada com Deus.


Eu deveria chamá-los de hereges pestilentos. Com efeito, o que é mais ímpio e herético do que dizer que as indulgências do papa são a graça da reconciliação com Deus? No entanto, para reprimir minha cólera, quero crer, antes, que eles tenham dito ou proposto tais coisas não por malícia ou deliberadamente, e sim por mera ignorância e falta de erudição e inteligência. Mesmo assim, também existe temeridade no fato de, como gente tão indouta, eles não terem feito, antes, o trabalho de um boieiro, ao invés de assumirem a tarefa de ensinar as almas de Cristo. Ouçam, pois, esse boieiro grunhir suas palavras. Assim diz em seu livreco, depois de dividir as indulgências em quatro graças principais e em muitas outras menos principais: “A primeira graça principal é a remissão plenária de todos os pecados. Não se pode mencionar nada que seja maior do que esta graça, porque, por ela, o ser humano pecador e privado da graça divina alcança perfeita remissão e, de novo, a graça de Deus.” É o que ele diz. Eu pergunto: que sentina de hereges alguma vez falou coisa tão herética? Já a partir desta passagem pode-se aprender por que acontece que o povo ouve coisas tão ímpias, embora eles digam que ensinam coisas santíssimas. Oxalá aqui estivessem o zelo e a eloqüência do divino Jerônimo! Causa-me vergonha uma temeridade tão grande, que esse tagarela não teve receio de publicar esse livreco em face de quatro ilustres universidades circunjacentes, como se os gênios lá existentes tivessem sido completamente transformados em fétidos cogumelos. Aflige-me o fato de que também nossos vizinhos hereges, os begardos, finalmente teriam uma oportunidade para acusar com razão a Igreja Romana, se ouvissem que tais coisas são nela ensinadas. Mas que esse imbecil autor talvez tenha dito isso não por malícia, e sim por ignorância, pode-se ver a partir do fato de dizer que “por ela (isto é, a primeira graça, a remissão plenária), o ser humano alcança perfeita remissão”. O que quer dizer isto: “Pela remissão plenária ele alcança remissão plenária, e pela graça de Deus alcança a graça de Deus”? Acaso ele não sonha por uma febre ou sofre de um delírio? Mas volta a atenção ao sentido herético. Ele quer dizer, quanto a essa primeira graça, que não pode ser mencionado nada maior do que ela e que o ser humano privado da graça a obtém. Está claro que isso não pode ser entendido senão a respeito da graça justificante do Espírito e que ele mesmo não o entende de outra forma. Do contrário ela não seria aquilo em relação ao qual nada maior pode ser mencionado. Aliás, mesmo que falasse outras cosias sobre a graça justificante, ele falaria de maneira suficientemente ímpia, pois só Deus é aquilo em relação ao qual não se pode mencionar coisa maior. Com efeito, o B. Agostinho não [fala] assim com ele, mas diz que entre as dádivas criadas nada é maior do que o amor. Aqui, porém, ele mistura a graça de Deus e a graça do papa no caos de uma só palavra, como autor digno de tal opinião ou de tal erro.

Segue-se no mesmo livro: “Por essa remissão dos pecados também lhe são plenamente remitidas as penas a serem pagas no purgatório por causa de ofensa à divina majestade, e as penas de dito purgatório são completamente apagadas.” Ouvimos um oráculo de Delfos: quem tudo ignora, absolutamente de nada duvida. Ele se pronuncia tranqüilamente acerca do poder das chaves sobre o purgatório. Mas já dissemos o suficiente sobre isso acima.

[…]


TESE XXXIV
Pois aquelas graças das indulgências se referem somente às penas de satisfação sacramental, determinadas por seres humanos.


Esta tese está abundantemente clara a partir das teses 5 e 20 acima.


TESE XXXV
Não pregam cristâmente os que ensinam não ser necessária a construção àqueles que querem resgatar almas ou adquirir breves confessionais.


Por que, pergunto, eles dão aos seres humanos essa dilação, para perigo destes? E de que aproveita que lhes sejam pregadas tais coisas, ainda que fossem verdadeiras, senão que se busca o dinheiro e não a salvação das almas? Ora, como são ímpias e falsas, com muito mais razão devem ser rejeitadas. É certo que também eu permiti, mais acima, que possam ser remitidas as penas mesmo às pessoas que não estão contritas, o que eles negam. Aqui, inversamente, creio que deve ser negado o que eles afirmam. E tenho sobre os breves de confissão a mesma opinião como sobre as penas: em ambos os casos não se precisa de contrição, nem no que diz respeito à sua compra nem no que diz respeito ao seu uso, o que eles negam.

[…]

Dizem eles, no entanto, que essa redenção não se estriba na obra de quem redime, mas sim no mérito daquele a ser redimido. Respondo: quem disse isso? De onde é provado? Então por que aquele a ser redimido não é libertado por seu próprio mérito, sem a obra de quem redime? Mas então não cresceria o dinheiro cobiçado por causa da salvação das almas. Então por que não chamamos os turcos e os judeus, para que, junto conosco, também depositem seu dinheiro, não por causa de nossa cobiça, mas por causa da redenção das almas? O fato de não serem batizados parece não constituir um obstáculo, pois aqui não é necessário senão o dinheiro de quem dá, de forma alguma a alma de quem se perde. Pois essa doação só se estriba na alma a ser redimida. Creio que mesmo que um asno depositasse ouro, também ele redimiria; pois se exigisse alguma disposição, também a graça seria necessária, já que um cristão pecador desagrada mais a Deus do que qualquer descrente, e o zurrar não desfigura o asno tanto quanto a impiedade desfigura o cristão.

[…]


TESE XXXVI
Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito à remissão plena de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência.


Do contrário estariam em perigo as pessoas que não tivessem tais cartas, o que é errado, já que estas não são ordenadas nem recomendadas, e sim livres. Também não pecam as pessoas que não fazem caso delas, nem estão, por isto, em perigo quanto à sua salvação. Isto se evidencia a partir do fato de que tais pessoas já estão no caminho dos mandamentos de Deus, e se por acaso alguma vez não lhes fosse dada tal remissão, mesmo assim ela lhes seria devida, como diz o papa. Aqui, porém, interpõe-se a inteligência agudíssima de certas pessoas que dizem que isso seria verdade se os cânones fossem penas impostas tão-somente pelo papa, mas que em verdade elas são declarações de penas infligidas por Deus. Convém que assim falem as pessoas que, de uma vez por todas, se propuseram perseguir a verdade com ódio perpétuo.

Em primeiro lugar, proclamam, como que a partir de um oráculo, que Deus exige uma pena satisfatória pelos pecados, quer dizer, uma pena diferente da cruz evangélcia (isto é, jejuns, trabalhos, vigílias), diferente da castigadora. É que eles não se referem a estas porque não podem negar que são remitidas tão-somente por Deus.

Em segundo lugar, a essa monstruosidade acrescentam uma maior, a saber, que os cânones declaram [a pena como] imposta [por Deus]. Logo, ao papa só cabe declarar, nunca, porém, impor e relaxar. Do contrário, contra a palavra de Cristo, nos ensinariam isto: “Tudo o que eu ligar tu desligarás.”


TESE XXXVII
Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em todos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência.


É impossível ser cristão sem ter Cristo. Se tem Cristo, tem-se, ao mesmo tempo, tudo o que é de Cristo. Pois diz o santo apóstolo em Rm 13.14: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo.” Em Rm 8.32: “De que maneira não nos dará com ele todas as coisas?” E em 1Co 3.21s.: “Tudo é vosso, seja Cefas, seja Paulo, seja a vida, seja a morte.” Em 1Co 12: “Vós não sois de vós mesmos, mas membros do membro.” E em outras passagens, onde escreve que, em Cristo, todos nós somos um só corpo, um só pão, membros uns dos outros. E em Ct [2.16]: “O meu amado é meu, e eu sou dele.”. É que pela fé em Cristo o cristão é feito um só espírito e unido com Cristo. Pois serão os dois uma só carne, o que é um grande mistério em Cristo e na Igreja. Visto, pois, que o Espírito de Cristo está nos cristãos, pelo qual se tornam irmãos, co-herdeiros, um só corpo e cidadãos de Cristo, como poderia não haver aí participação em todos os bens de Cristo? Pois também Cristo tem tudo o que é seu do mesmo Espírito. Assim sucede, pelas inestimáveis riquezas das misericórdias de Deus Pai, que o cristão pode gloriar-se e, com confiança, tudo arrogar-se em Cristo, a saber, que a justiça, a força, a paciência, a humildade e todos os méritos de Cristo são também seus pela unidade do Espírito a partir da fé nele, e, inversamente, que todos os seus pecados já não são mais seus, mas, pela mesma unidade, de Cristo, no qual todas as coisas também serão absolvidas. E é esta a confiança dos cristãos e a jovialidade de nossa consciência: pela fé, nossos pecados não são nossos, mas de Cristo, sobre o qual Deus colocou os pecados de todos nós; ele levou sobre si os nossos pecados; ele é o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Inversamente, toda justiça de Cristo se torna nossa. Pois ele impõe sua mão sobre nós, e ficamos bem, e ele estende seu manto e nos cobre, bendito Salvador em eternidade, amém.

[…]


TESE XXXVIII
Mesmo assim, a remissão e participação do papa de forma alguma devem ser desprezadas, porque (como disse) constituem declaração do perdão divino.


Não que seja necessária a declaração feita nas cartas públicas de indulgências (pois é suficiente a declaração feita na confissão privada), mas ela não deve ser desprezada, já que, por meio dela, é tornada conhecida e confirmada também à Igreja a declaração feita privadamente. Com efeito, é assim que, creio eu, isso deve ser entendido. Quem tiver coisa melhor que o diga. Pois não vejo que outras coisas faria essa participação pública. Contudo, embora não negue que essa tese tenha sido aceita por todos (como creio), disse acima na tese 6 que não me agrada essa maneira de falar, [segundo a qual] o papa não faz outra coisa senão declarar ou confirmar a remissão divina ou participação. Pois, em primeiro lugar, isso desvaloriza por demais as chaves da Igreja, sim, torna de algum modo ineficaz a palavra de Cristo que diz: “Tudo o que”, etc. É que “declaração” é módico demais. Em segundo lugar, porque todas as coisas serão incertas para a pessoa a quem é feita a declaração, ainda que aos outros ou à Igreja, exterior e publicamente, sua remissão e reconciliação fiquem certas.

[…]


TESE XXXIX
Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar perante o povo, ao mesmo tempo, a liberalidade das indulgências e a verdadeira contrição.


A razão desta tese é a tese seguinte.

 

Fonte: Martinho Lutero, Obras Selecionadas - Os Primórdios Escritos de 1517 a 1519. Volume I. Comissão Interluterana da Literatura São Leopoldo. Co-Editoras: Editora Sinodal (São Leopoldo), Concórdia Editora (Porto Alegre), Editora da Ulbra (Canoas). 2004


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